segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Drauzio Varella - A obsessão de seu Elias




(Um dos melhores textos que conheço sobre o ciúme.)

Quando dona Esmeralda contava que tinha setenta anos na presença do Fernando, meu irmão, ele a repreendia: “Não seja boba, diga sessenta!” Se dissesse, de fato não faria má figura: tinha o rosto quase sem rugas.
Seu Isidoro, o marido, jamais deixou de acompanhá-la às consultas e a quantos lugares foram necessários por causa da doença, comportamento inusitado entre os homens.
Quando foi hospitalizada, ele chegava às seis da manhã e só arredava pé às onze da noite, enxotado por ela, preocupada com as noites maldormidas do esposo hipertenso.
Dificil ver um casal que se entendesse e se respeitasse como aquele, apesar dos temperamentos opostos: dona Esmeralda era extrovertida, contadora de casos, gostava de sair com as amigas, usar roupas coloridas; seu Isidoro, caseiro, metódico, discreto no vestuário, media as palavras antes de pronunciá-las. Por isso, ela comparava a harmonia em que viviam ao prosaico arroz e feijão:
- Separados são diferentes; misturados, combinam tanto que a gente não enjoa.
Formavam uma parceria engraçada, porque ela falava pelos dois e não perdia oportunidade de provocá-lo com alguma referência a sua personalidade taciturna. Ele sorria ou balançava a cabeça, complacente, mas, de quando em quando, emitia uma interjeição ou fazia um pequeno comentário de acurado senso de humor. Nessas ocasiões, ria ela e quem estivesse por perto. Uma vez, depois de descrever com detalhes a casa em que moravam, dona Esmeralda perguntou-lhe por que não acrescentava nada à sua descrição:
- Estava esperando você parar para respirar - respondeu ele, sério.
Outra vez, tendo contado uma aventura que seu Isidoro vivera antes de conhecê-la, a qual, entre outros detalhes relatados, incluía uma batalha de flechas entre índios rivais entrincheirados nas margens opostas de um rio na Amazônia, onde ele fazia um estudo de prospecção geológica, ela reclamou:
- Tudo se passou com ele, mas eu é que preciso contar, porque há quarenta anos vivo com um túmulo dentro de casa.
- Não perco a esperança de contar essa história, se um dia você deixar.
Dona Esmeralda foi internada quando  a doença chegou ao estágio final. Enfraquecida, menos falante, ainda fazia planos e mantinha em relação ao futuro um otimismo descabido, difícil  de entender numa pessoa esclarecida como ela. Atribuímos sua atitude ao processo de negação, tão freqüente na fase terminal, e procuramos poupá-la de explicações que lhe dessem noção exata da evolução desfavorável.
Nessa fase, apareceu no consultório um senhor árabe de bengala e cabelos brancos. Sentou-se na minha frente, pouco à vontade:
- Em que posso ajudá-lo? - perguntei.
Ajeitou-se na cadeira, apertou minha mão timidamente, disse que se chamava Elias e continuou, em tom pausado:
- Não estou doente, marquei consulta para lhe fazer um pedido: convencer sua paciente Esmeralda a receber minha visita. Se ela morrer sem que eu a veja, não vou me perdoar.
- Por que o senhor não fala diretamente com ela?
- Ela não atenderia ao telefone. Fomos casados durante cinco anos e nos separamos por incompatibilidade de gênios. Nunca mais consegui tirá-la da cabeça, penso nela todo santo dia.
- Os senhores tiveram algum contato? Como soube que ela está doente?
- Não a vejo há quarenta e três anos. Foi melhor para nós! No fim de semana, a mulher de um amigo me pôs a par dos problemas dela e me deu o seu nome, doutor. Desde então, não penso noutra coisa senão em vê-la pela última vez.
- Posso falar, mas a decisão é dela, como o senhor sabe.
- Preciso de sua ajuda; serei eternamente grato. Explique que não pretendo falar do passado, nem dizer o quanto sofri quando ela me abandonou, só quero olhar para ela. Nada mais!
Fiquei tocado pela amargura em sua expressão. Estranho imaginar que dona Esmeralda um dia tivesse casado com outro homem.
Na manhã seguinte, fui para o hospital decidido a fazer o que o senhor árabe havia solicitado. Estavam ela e  o marido no quarto. Com a máxima delicadeza, perguntei a ele se podia nos deixar a sós durante quinze minutos.
- Até por mais tempo - respondeu seu Isidoro, que ainda não tinha tomado o café-da-manhã.
- Dona Esmeralda, ontem fui procurado por um senhor que disse ter sido seu primeiro marido.
Ela arregalou os olhos:
- Ele está vivo?
- Parecia bem de saúde, e me encarregou de lhe fazer um pedido. Não tenho como deixar de atendê-lo, a menos que a senhora nem queira ouvir.
- O que ele deseja?
- Ver a senhora. Diz que não falará sobre o passado.
Ela ficou calada, olhos perdidos no  teto, enigmáticos. Depois me pediu que levantasse a cabeceira da cama.
- Se o senhor tem mesmo os quinze minutos, sente. Vou lhe contar uma história:

Elias foi meu segundo namorado. Tinha trinta anos quando o conheci, dez mais do que eu. Fazia questão de repetir todos os dias, em particular ou na frente dos outros, que nunca vira mulher tão encantadora. Na terceira vez em que saímos, ganhei um anel de ouro; para comemorar trinta dias de namoro, um colar de pérolas verdadeiras; passados três meses, estava na sala de casa me pedindo em noivado para meus pais. Nunca imaginei que um homem pudesse tratar uma mulher com tanta consideração.
Coitado, havia chegado ao Brasil aos dezoito anos, sozinho, depois de perder a mãe viúva na Síria. Dizia que  eu devia ser um anjo enviado por ela para iluminar o caminho do filho. Fiquei apaixonada, era uma princesa ao lado daquele homem amoroso, incapaz de um gesto rude. Casamos em seis meses.
Quando voltamos da lua-de-mel, fomos ao aniversário da esposa de um patrício dele, rapaz simpático, com sotaque forte, que contava casos muito engraçados. Eu, brincalhona desde criança, ri muito naquela noite; mas não fui a única, todo mundo se divertiu. Menos o Elias, que passou a festa emburrado e fez questão de irmos embora cedo, contra minha vontade.
No caminho perguntei a razão do mau humor. Foi o começo do inferno! Ele ficou transtornado, aos berros disse que eu não sabia me comportar, que jogava a cabeça para trás quando ria só para provocar os homens, que meu vestido era curto, mais de cotado do que devia, e por aí afora. Fiquei chocada, porque até aquela noite ele tinha sido um cavalheiro impecável.
Acordei de manhã com os olhos inchados de chorar. Quando me viu, ele ajoelhou a meus pés, jurou ter armado aquela cena porque estava enlouquecido de paixão por mim, porque eu era maravilhosa e encantava os homens a minha volta; não que fosse culpada, admitia, mas por ser ingênua: não tinha noção da sensualidade que emanava de meu corpo. No fim, pediu apenas que eu prestasse atenção, fosse mais reservada na frente dos homens, para que não levassem a mal minha espontaneidade. A noite, chegou com dois pingentes de ouro, lindos.
Naquele tempo éramos educadas para ser discretas e acomodadas. Na minha inexperiência, achei que ele talvez tivesse razão: se algo em mim despertava cobiça nos homens, precisava mesmo tomar cuidado. Não tinha a menor intenção de magoar meu marido, estava apaixonada; solicitei até que ele me alertar se ao notar algum comportamento desavisado de minha parte.
Elias tomou o pedido ao pé da letra, e lentamente aumentou a pressão para mudar minha personalidade. No início, implicava com o decote de um vestido, com a espontaneidade de uma reação  em  público,  com  o  fato  de  eu falar com o garçom. Com o tempo, eu trocava de roupa três ou quatro vezes antes de sair, até encontrar uma do gosto dele; nos restaurantes, quando não havia mesa disponível num local que me deixasse de frente para a parede, nem entrávamos; ir à padaria ou à quítanda ficou por conta da empregada, a menos que eu estivesse disposta a enfrentar duas horas de discussão.
Contando assim, o senhor vai achar que eu era submissa demais. Talvez fosse, mas no casamento as restrições não são impostas de um dia para outro; acumulam-se na rotina diária sem que a gente se dê conta: as brigas entremeadas de declarações de amor, pedidos de perdão, presentes apaixonados. Nos momentos de reconciliação, ele dizia com ternura não pretender destruir em mim a sensualidade nem a vaidade feminina; desejava apenas que essas qualidades fossem reservadas exclusivamente para o homem que me amava acima de todas as coisas. Por isso, comprava vestidos vermelhos, minissaias e blusas decotadas capazes de fazer corar uma prostituta. Na hora de sair, ele me queria vestida de freira, sentada de costas para os homens; na volta, ao fechar a porta, implorava que eu soltasse os cabelos, vestisse aquelas roupas escandalosas e dançasse para ele no meio da sala.
Fiquei completamente perdida durante quatro anos de casamento. No quinto, começou a tomar corpo em mim a idéia de que a paixão existente entre nós havia se transformado. Estávamos doentes: ele por ter se deixado levar por aquela loucura, eu por me submeter a ela. Quando isso ficou  claro, quis voltar para a casa dos meus pais, mesmo contra a vontade deles, que não admitiam a hipótese de ter uma filha desquitada, mas o Elias ficou alucinado, ameaçou cortar os pulsos, dar um tiro no peito, suplicou perdão, jurou pôr fim àquela obsessão possessiva e fez mil promessas, nunca cumpridas.
Essas idas e vindas continuaram até a situação chegar ao limite; achei que nunca me libertaria daquela opressão angustiante e acabaria louca. Foi a sorte! O instinto de sobrevivência falou mais alto: se ele se opunha à separação, só me restava a alternativa de fugir.
Numa segunda-feira, com a ajuda  de uma prima, finalmente criei coragem: esperei Elias sair para trabalhar, juntei algumas roupas na mala e fui embora antes de receber o primeiro te lefonema do dia, dado religiosamente assim que ele pisava na loja. Enquanto esperava o elevador, o telefone tocou sem parar. Tomei um ônibus para o Rio Grande do Norte, onde o marido dessa prima tinha parentes que se dispuseram a me receber em segredo. Lá, três anos depois, conheci o Isidoro.

- O que devo dizer para seu Elias?
- Que não venha!
- A senhora tem certeza? Ele disse que desejava apenas vê-la.
- Doutor, não sei quantos dias ainda estarei por aqui, mas serão poucos. Procuro fingir que não percebo, para não entristecer ainda mais o Isidoro. Quero aproveitar todo o tempo ao lado desse homem que só me fez bem. Não quero desperdiçar nem um minuto com alguém capaz de me trazer lembranças desagradáveis nesta hora.
Quando cheguei ao consultório, seu Elias me aguardava com o rosto abatido. Levei-o até minha sala:
- Não tenho boas notícias. Ela não quer vê-lo, disse isso com tanta convicção que, se eu fosse o senhor, não insistiria.
Ele pôs a cabeça entre as mãos e chorou sem emitir nenhum som. Desviei o olhar para baixo, em respeito a sua dor. Quando conseguiu se controlar, tirou um lenço amassado do bolso do paletó, enxugou as lágrimas, pediu desculpas e foi embora, apoiado na bengala.




Nenhum comentário: