(Um
dos melhores textos que conheço sobre o ciúme.)
Quando
dona Esmeralda contava que tinha setenta anos na presença do Fernando, meu
irmão, ele a repreendia: “Não seja boba, diga sessenta!” Se dissesse, de fato
não faria má figura: tinha o rosto quase sem rugas.
Seu
Isidoro, o marido, jamais deixou de acompanhá-la às consultas e a quantos
lugares foram necessários por causa da doença, comportamento inusitado entre os
homens.
Quando
foi hospitalizada, ele chegava às seis da manhã e só arredava pé às onze da
noite, enxotado por ela, preocupada com as noites maldormidas do esposo
hipertenso.
Dificil
ver um casal que se entendesse e se respeitasse como aquele, apesar dos
temperamentos opostos: dona Esmeralda era extrovertida, contadora de casos,
gostava de sair com as amigas, usar roupas coloridas; seu Isidoro, caseiro,
metódico, discreto no vestuário, media as palavras antes de pronunciá-las. Por
isso, ela comparava a harmonia em que viviam ao prosaico arroz e feijão:
-
Separados são diferentes; misturados, combinam tanto que a gente não enjoa.
Formavam
uma parceria engraçada, porque ela falava pelos dois e não perdia oportunidade
de provocá-lo com alguma referência a sua personalidade taciturna. Ele sorria
ou balançava a cabeça, complacente, mas, de quando em quando, emitia uma
interjeição ou fazia um pequeno comentário de acurado senso de humor. Nessas
ocasiões, ria ela e quem estivesse por perto. Uma vez, depois de descrever com
detalhes a casa em que moravam, dona Esmeralda perguntou-lhe por que não
acrescentava nada à sua descrição:
-
Estava esperando você parar para respirar - respondeu ele, sério.
Outra
vez, tendo contado uma aventura que seu Isidoro vivera antes de conhecê-la, a
qual, entre outros detalhes relatados, incluía uma batalha de flechas entre
índios rivais entrincheirados nas margens opostas de um rio na Amazônia, onde
ele fazia um estudo de prospecção geológica, ela reclamou:
-
Tudo se passou com ele, mas eu é que preciso contar, porque há quarenta anos
vivo com um túmulo dentro de casa.
-
Não perco a esperança de contar essa história, se um dia você deixar.
Dona
Esmeralda foi internada quando a doença
chegou ao estágio final. Enfraquecida, menos falante, ainda fazia planos e
mantinha em relação ao futuro um otimismo descabido, difícil de entender numa pessoa esclarecida como ela.
Atribuímos sua atitude ao processo de negação, tão freqüente na fase terminal, e
procuramos poupá-la de explicações que lhe dessem noção exata da evolução
desfavorável.
Nessa
fase, apareceu no consultório um senhor árabe de bengala e cabelos brancos.
Sentou-se na minha frente, pouco à vontade:
-
Em que posso ajudá-lo? - perguntei.
Ajeitou-se
na cadeira, apertou minha mão timidamente, disse que se chamava Elias e
continuou, em tom pausado:
-
Não estou doente, marquei consulta para lhe fazer um pedido: convencer sua
paciente Esmeralda a receber minha visita. Se ela morrer sem que eu a veja, não
vou me perdoar.
-
Por que o senhor não fala diretamente com ela?
-
Ela não atenderia ao telefone. Fomos casados durante cinco anos e nos separamos
por incompatibilidade de gênios. Nunca mais consegui tirá-la da cabeça, penso
nela todo santo dia.
-
Os senhores tiveram algum contato? Como soube que ela está doente?
-
Não a vejo há quarenta e três anos. Foi melhor para nós! No fim de semana, a
mulher de um amigo me pôs a par dos problemas dela e me deu o seu nome, doutor.
Desde então, não penso noutra coisa senão em vê-la pela última vez.
-
Posso falar, mas a decisão é dela, como o senhor sabe.
-
Preciso de sua ajuda; serei eternamente grato. Explique que não pretendo falar
do passado, nem dizer o quanto sofri quando ela me abandonou, só quero olhar
para ela. Nada mais!
Fiquei
tocado pela amargura em sua expressão. Estranho imaginar que dona Esmeralda um
dia tivesse casado com outro homem.
Na
manhã seguinte, fui para o hospital decidido a fazer o que o senhor árabe havia
solicitado. Estavam ela e o marido no
quarto. Com a máxima delicadeza, perguntei a ele se podia nos deixar a sós
durante quinze minutos.
-
Até por mais tempo - respondeu seu Isidoro, que ainda não tinha tomado o
café-da-manhã.
-
Dona Esmeralda, ontem fui procurado por um senhor que disse ter sido seu
primeiro marido.
Ela
arregalou os olhos:
-
Ele está vivo?
-
Parecia bem de saúde, e me encarregou de lhe fazer um pedido. Não tenho como
deixar de atendê-lo, a menos que a senhora nem queira ouvir.
-
O que ele deseja?
-
Ver a senhora. Diz que não falará sobre o passado.
Ela
ficou calada, olhos perdidos no teto,
enigmáticos. Depois me pediu que levantasse a cabeceira da cama.
-
Se o senhor tem mesmo os quinze minutos, sente. Vou lhe contar uma história:
Elias
foi meu segundo namorado. Tinha trinta anos quando o conheci, dez mais do que
eu. Fazia questão de repetir todos os dias, em particular ou na frente dos
outros, que nunca vira mulher tão encantadora. Na terceira vez em que saímos,
ganhei um anel de ouro; para comemorar trinta dias de namoro, um colar de
pérolas verdadeiras; passados três meses, estava na sala de casa me pedindo em
noivado para meus pais. Nunca imaginei que um homem pudesse tratar uma mulher
com tanta consideração.
Coitado,
havia chegado ao Brasil aos dezoito anos, sozinho, depois de perder a mãe viúva
na Síria. Dizia que eu devia ser um anjo
enviado por ela para iluminar o caminho do filho. Fiquei apaixonada, era uma
princesa ao lado daquele homem amoroso, incapaz de um gesto rude. Casamos em
seis meses.
Quando
voltamos da lua-de-mel, fomos ao aniversário da esposa de um patrício dele,
rapaz simpático, com sotaque forte, que contava casos muito engraçados. Eu,
brincalhona desde criança, ri muito naquela noite; mas não fui a única, todo
mundo se divertiu. Menos o Elias, que passou a festa emburrado e fez questão de
irmos embora cedo, contra minha vontade.
No
caminho perguntei a razão do mau humor. Foi o começo do inferno! Ele ficou
transtornado, aos berros disse que eu não sabia me comportar, que jogava a
cabeça para trás quando ria só para provocar os homens, que meu vestido era
curto, mais de cotado do que devia, e por aí afora. Fiquei chocada, porque até
aquela noite ele tinha sido um cavalheiro impecável.
Acordei
de manhã com os olhos inchados de chorar. Quando me viu, ele ajoelhou a meus
pés, jurou ter armado aquela cena porque estava enlouquecido de paixão por mim,
porque eu era maravilhosa e encantava os homens a minha volta; não que fosse
culpada, admitia, mas por ser ingênua: não tinha noção da sensualidade que
emanava de meu corpo. No fim, pediu apenas que eu prestasse atenção, fosse mais
reservada na frente dos homens, para que não levassem a mal minha
espontaneidade. A noite, chegou com dois pingentes de ouro, lindos.
Naquele
tempo éramos educadas para ser discretas e acomodadas. Na minha inexperiência,
achei que ele talvez tivesse razão: se algo em mim despertava cobiça nos
homens, precisava mesmo tomar cuidado. Não tinha a menor intenção de magoar meu
marido, estava apaixonada; solicitei até que ele me alertar se ao notar algum
comportamento desavisado de minha parte.
Elias
tomou o pedido ao pé da letra, e lentamente aumentou a pressão para mudar minha
personalidade. No início, implicava com o decote de um vestido, com a
espontaneidade de uma reação em público,
com o fato
de eu falar com o garçom. Com o
tempo, eu trocava de roupa três ou quatro vezes antes de sair, até encontrar
uma do gosto dele; nos restaurantes, quando não havia mesa disponível num local
que me deixasse de frente para a parede, nem entrávamos; ir à padaria ou à
quítanda ficou por conta da empregada, a menos que eu estivesse disposta a
enfrentar duas horas de discussão.
Contando
assim, o senhor vai achar que eu era submissa demais. Talvez fosse, mas no
casamento as restrições não são impostas de um dia para outro; acumulam-se na
rotina diária sem que a gente se dê conta: as brigas entremeadas de declarações
de amor, pedidos de perdão, presentes apaixonados. Nos momentos de
reconciliação, ele dizia com ternura não pretender destruir em mim a
sensualidade nem a vaidade feminina; desejava apenas que essas qualidades
fossem reservadas exclusivamente para o homem que me amava acima de todas as
coisas. Por isso, comprava vestidos vermelhos, minissaias e blusas decotadas capazes
de fazer corar uma prostituta. Na hora de sair, ele me queria vestida de
freira, sentada de costas para os homens; na volta, ao fechar a porta,
implorava que eu soltasse os cabelos, vestisse aquelas roupas escandalosas e
dançasse para ele no meio da sala.
Fiquei
completamente perdida durante quatro anos de casamento. No quinto, começou a
tomar corpo em mim a idéia de que a paixão existente entre nós havia se
transformado. Estávamos doentes: ele por ter se deixado levar por aquela
loucura, eu por me submeter a ela. Quando isso ficou claro, quis voltar para a casa dos meus pais,
mesmo contra a vontade deles, que não admitiam a hipótese de ter uma filha
desquitada, mas o Elias ficou alucinado, ameaçou cortar os pulsos, dar um tiro
no peito, suplicou perdão, jurou pôr fim àquela obsessão possessiva e fez mil
promessas, nunca cumpridas.
Essas
idas e vindas continuaram até a situação chegar ao limite; achei que nunca me
libertaria daquela opressão angustiante e acabaria louca. Foi a sorte! O
instinto de sobrevivência falou mais alto: se ele se opunha à separação, só me
restava a alternativa de fugir.
Numa
segunda-feira, com a ajuda de uma prima,
finalmente criei coragem: esperei Elias sair para trabalhar, juntei algumas
roupas na mala e fui embora antes de receber o primeiro te lefonema do dia,
dado religiosamente assim que ele pisava na loja. Enquanto esperava o elevador,
o telefone tocou sem parar. Tomei um ônibus para o Rio Grande do Norte, onde o
marido dessa prima tinha parentes que se dispuseram a me receber em segredo.
Lá, três anos depois, conheci o Isidoro.
-
O que devo dizer para seu Elias?
-
Que não venha!
-
A senhora tem certeza? Ele disse que desejava apenas vê-la.
-
Doutor, não sei quantos dias ainda estarei por aqui, mas serão poucos. Procuro
fingir que não percebo, para não entristecer ainda mais o Isidoro. Quero
aproveitar todo o tempo ao lado desse homem que só me fez bem. Não quero
desperdiçar nem um minuto com alguém capaz de me trazer lembranças
desagradáveis nesta hora.
Quando
cheguei ao consultório, seu Elias me aguardava com o rosto abatido. Levei-o até
minha sala:
-
Não tenho boas notícias. Ela não quer vê-lo, disse isso com tanta convicção
que, se eu fosse o senhor, não insistiria.
Ele
pôs a cabeça entre as mãos e chorou sem emitir nenhum som. Desviei o olhar para
baixo, em respeito a sua dor. Quando conseguiu se controlar, tirou um lenço
amassado do bolso do paletó, enxugou as lágrimas, pediu desculpas e foi embora,
apoiado na bengala.
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