terça-feira, 29 de maio de 2012

A morte do avô


Quando atendi ao telefone naquela manhã uma voz feminina perguntou:
- É do consultório do Dr. Fulano?
- É sim. Mas ele está viajando.
- Você trabalha com ele?
- Trabalho.
- É psicólogo?
- Isso.
- Será se você poderia me ajudar? Eu fui atendida anos atrás pelo Dr e estou precisando de uma orientação...
- Claro...
- Estou numa situação aqui, sem saber o que fazer... Meu filho de sete anos está na escola, esperando o avô. Como sempre faz na sexta feira, levou na sua mochila da escola mudas de roupas, pois meu pai iria buscá-lo depois da aula e levá-lo diretamente para o sítio. Ele sempre fazia isso, os dois são muito ligados. Mas meu pai acaba de morrer, teve um ataque cardíaco, e meu filho está na escola esperando que ele vá buscá-lo... Não sei o que fazer...
- Ligue para a escola, conte o acontecido, pergunte se eles podem disponibilizar uma sala para você conversar com seu filho, vá até lá, peça para chamá-lo na sala e converse com ele, conte a ele do falecimento do avô. Tenha calma, deixe que ele assimile e estimule-o a perguntar. Responda as perguntas e leve-o pra casa. Depois me ligue pra contar como foi, ok?

(E pensei na coincidência dela ter conversado justo comigo... Perdi meu pai aos 10 anos e acho que sei, ao menos em parte, o que seu filho sentiria neste momento.)

Algumas horas mais tarde, ela ligou novamente:
- Fiz tal como você sugeriu. Acabamos de chegar a casa. Ele foi até o quarto, pegou uma tesoura, abriu a mochila, pegou as roupas que havíamos separados para ele levar para o sítio e começou a cortá-las... O que faço?
- A tesoura tem ponta?
- Não.
- As roupas são velhas, são roupas de sítio mesmo?
- Isso.
- Então deixa. Ele está frustrado, está com raiva, começa a entender que não vai mais para o sítio, que não vai mais encontrar o avô. Deixe-o descarregar nas roupas que lembram a ele a situação. Ele está elaborando o acontecido. Isso é bom... Observe e, qualquer coisa, ligue.

Uma hora depois:
- Ele empurrou o sofá até a porta de entrada do apartamento. Disse que nunca mais vou sair de casa...

(Lembrei-me imediatamente do horror que senti ao reencontrar pela primeira vez a minha mãe depois de saber da morte repentina de meu pai. Se até ele podia morrer, podia me deixar sozinho, ela também poderia. Durante um bom tempo eu entrava em pânico quando ela saía de casa...).

- Ele descobriu que a morte existe. E que, se o avô pode morrer, você também pode. Explique pra ele que é verdade, que você também vai morrer um dia, assim como todos, mas que você é muito nova e que as pessoas que já são mais velhas é que já começam a adoecer mais e ficam mais frágeis. Explique que você cuida da sua saúde e que ainda vai viver muito, até ficar velhinha e ele bem grande, e que ele pode ficar tranquilo... mas, pensando bem, me diga uma coisa... cadê o seu marido, cadê o pai de seu filho?
- Ele está no velório.
- Deixe-me ver se entendi: Seu marido está no velório do sogro dele e você não está no velório de seu pai?
- Mas o que posso fazer?! Meu filho não vai me deixar sair de casa...
- Sua casa só tem uma porta? Não tem a saída pela porta da cozinha? Seu filho, ainda menino, deve ter se esquecido de bloquear a porta da cozinha... Você pretende levar seu filho ao velório ou ao enterro?
- Não!! Eu devo?!
- A decisão é sua. Se prefere não levar, então ligue para seu marido, peça para ele voltar a casa para ficar com o menino. E vá se despedir de seu pai. É você que perdeu o pai, lembra-se?
- Tá!
- E só mais uma coisa: fique tranquila com relação a seu filho. As crianças se saem muito melhor do que nós nessas situações. E qualquer coisa, é só ligar.
- Tá! Obrigado, de verdade.. Qualquer coisa eu ligo. Tchau.

E não ligou mais.
Mais ou menos um mês depois, ela me liga:
- Olha, quero lhe agradecer muito pelo que fez por mim... Eu estava realmente desorientada e você me ajudou demais...
- Não foi nada, fico muito feliz por ter ajudado em algo...
- E queria também dizer que você tinha razão: Ele resolveu a questão melhor do que eu. Lembrei-me de te ligar ontem à noite. Estávamos todos em casa, jantando, e eu comecei a ficar triste, me lembrando de papai... Não falei nada, mas acho que ele percebeu alguma coisa, se levantou de sua cadeirinha e veio até mim. E disse:
- Mãe, fica triste não. Vovô morreu, foi pro céu, virou estrelinha. Isso acontece, ele já tava velhinho, ficou tanto tempo com a gente... E ele gosta tanto da gente que vai ficar sempre perto de nós... E um dia a gente também vai morrer e aí vamos encontrar com ele...

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