Para falarmos de
ANTI-INTRACEPÇÃO e de renegação é necessário que antes façamos a diferenciação
entre estereotipia e preconceito, e suas relações com o problema do estigma.
A palavra estereotipia vem do francês stére,
derivado do grego stereós ( sólido, firme ). Diz respeito a técnicas de
impressão, onde se converte em formas sólidas (clichê) as páginas que
primeiramente foram compostas em caracteres móveis. Ou seja, remete a uma transformação
do que era móvel em uma forma compacta, fixa. Estereotipar tem nesse contexto o
significado de tornar fixo, inalterável. No contexto da psicopatologia a
estereotipia seria uma repetição automática e frequente de atitudes, gestos ou
palavras, sendo comummente encontrada nos esquizofrênicos, especialmente nos
catatônicos, como uma "perseveração extravagante e incompreensível"(Alonso
Fernandes).
A palavra preconceito, no
dicionário etimológico, significa um pensamento, ideia ou opinião prévios, algo
como um conceito formado antecipadamente, sem que se tenha um fundamento, um
juízo prévio a respeito de algum aspecto da realidade antes que se conheça
adequadamente este aspecto. Num contexto social poderíamos dizer do preconceito
como sendo uma atitude de hostilidade frente a um grupo ou a uma pessoa
enquanto membro deste grupo, atitude esta apoiada num juízo prévio que carece
de fundamento. Uma "racionalização de uma atitude irracional"(Jahoda).
A relação entre estes dois
conceitos é delicada. Ambos são modos de não pensar. O preconceito frequentemente
se apoia no pensar estereotipado, e este se caracteriza por um maior grau de
rigidez. No preconceito os fatos podem não estar ao meu alcance. Uma vez que
deles eu dispusesse o preconceito se alteraria. Na estereotipia os fatos não
interessam, mesmo quando os tenho à mão. Usando uma metáfora, a estereotipia
seria como a cama de tortura de Procusto, na qual se coloca uma pessoa. O que
"sobrar", corta-se, o que faltar estica-se. Ou seja, o aspecto da
realidade que não se encaixar no que já tenho preconcebido eu excluo, não
considero. Quando na estereotipia - reino das categorias rígidas e inflexíveis
que não coincidem com a realidade - não estamos lidando com ilusões, nem com
enganos (que são próprios do estado nascente). Estamos no reino do delírio,
onde a característica principal é ser inalterável frente aos fatos.
Passemos agora ao problema
do estigma.
Na Grécia, onde surgiu, o
termo estigma foi utilizado para designar os sinais ou marcas corporais com os
quais se procurava evidenciar algo de mau sobre o status moral de quem os
apresentava. Essas cicatrizes indicavam que o portador era escravo, criminoso
ou traidor. Se tratava de uma pessoa marcada, ritualmente poluída(manchar,
sujar, corromper, macular, profanar), que deveria ser evitada. Na era cristã o
estigma teve dois sentidos: 1) Sinais corporais da graça divina, como no caso
das chagas (Chaga no latim vem associado
a praga, golpe, ferida, desgraça, flagelo, calamidade) com
a forma de flores em erupção sobre a pele; 2) Sinais médicos, como sinais
corporais de distúrbios físicos.
Atualmente o termo está mais
próximo de seu sentido original, de marca ou impressão indicativa de uma
degenerescência (mal, loucura, doença). Porém é mais aplicado à desgraça do que
à sua evidência corporal. Ou seja, alguma característica, algum atributo da
pessoa que tem um efeito de descrédito, inabilitando-a à aceitação social
plena.
Segundo Goffman, esse
atributo depreciativo não é depreciativo por si só, mas num determinado
contexto relacional. Além disso, nem todos os atributos indesejáveis estão em
questão mas somente os que são incongruentes com o estereótipo que criamos para
um determinado tipo de indivíduo.
Considerando que os modelos
identificatórios oferecidos pela cultura são, a maior parte das vezes, baseados
em modos estereotipados de se conceber a pessoa, estamos como que condenados a
viver num mundo de estigmas. A qualquer momento pode se revelar uma
característica incompatível com o modelo estereotipado(E isto é inevitável, posto que o modelo estereotipado se caracteriza
por uma extrema rigidez, uma missão impossível de se realizar, incompatível com
as possibilidades humanas) e esta
característica "revelaria" toda a miséria que a pessoa julga possuir,
e que a incapacitaria para uma relação social plena. Podemos dizer que
uma vez transitando nos modelos
estereotipados do dever ser inevitavelmente teremos, ao nível da vivência, a
permanente sensação de uma chaga prestes a se revelar e transformar nossa vida
numa catástrofe. Começamos então nossa carreira de colecionadores de segredos:
se o que julgamos ser nosso estigma é evidente à primeira vista nos
especializamos em manipular tensão; se não é evidente, nos especializamos em
manipular informações.
Para tentar escamotear o que
consideramos a nossa miséria, para tentar escapar do estigma que se baseia na
estereotipia, podemos utilizar de vários ardis. Neste trabalho pretendo falar
de quatro deles: a projeção, a fusão, o deslocamento e a renegação.
A função primordial da
projeção é tentar controlar o mal. E a maneira pela qual ela tenta fazer isto é
colocando o mal no outro. O procedimento é semelhante ao ritual de se
sacrificar um animal - o bode expiatório -, fazendo deste o portador de todo o
mal da tribo. Pega-se o mal coletivo e deposita-se no animal que é abandonado
no deserto, onde morre, expiando a culpa de todos. A diferença deste ritual
para o mecanismo da projeção é que no ritual ao menos sabia-se que o mal,
originalmente, era da tribo. Na projeção não percebo que o mal inicialmente era
meu, só o percebo no outro.
Na fusão, ensimesmado em meu
próprio mundo, misturo-me com o outro impedindo qualquer diferenciação. A
alteridade, neste caso, some, como que fagocitada. Uma ameba indiferenciada,
viro o que já sei e penso. Fico fundido, confundido com o(no) outro que, aliás,
não mais existe.
O deslocamento é o ardil
mais difícil de ser percebido. Este mecanismo tem função defensiva evidente.
Ocorre como um deslize: quero atingir a determinado alvo, mas não posso, ainda
não tenho força suficiente, então atinjo indiretamente. É a famosa espingarda
de matar veado na curva. Queria falar mal dos brancos, mas meu chefe é branco,
então falo mal dos judeus. Boto a fumaça num lugar, e o fogo no outro. Neste
ardil, apaixonado por imagens, fico vulnerável às aparências, preso nas
primeiras impressões. No futebol poderíamos imaginar a metáfora daquele que
desloca para receber a bola (responsivo) em contraposição àquele que desloca
para fugir dela.
Por último a renegação. Como
foi dito anteriormente, frente as nossas mentalidades estereotipada é
inevitável que nos coloquemos como estigmatizáveis. Neste contexto tentamos
renegar as vivências de miséria que temos. Há aqui um problema de auto-repúdio,
e de autoestima, uma desconfiança a respeito de si mesmo. A pessoa não pode
recuperar a própria experiência, e vive por isto mesmo num estado real de
miséria. Não pode voltar para si mesmo, ter-se e saber-se, apropriar-se de si
mesmo, pois tem a certeza de que vai encontrar a miséria comprovada e
definitiva. Assim mando o que julgo ser a minha miséria para "outro
país", mas quem acaba renegado/desterrado sou eu mesmo (É terreno fértil
para a despersonalização). Considero a renegação como a mais ampla das
categorias até então citadas. Ela envolve as categorias anteriores. Na projeção,
na fusão e no deslocamento evito a realidade pois quero evitar a imagem
deformada que tenho de mim mesmo. E deste modo estou no âmbito da renegação.
Considero a ANTI-INTRACEPÇÃO como sendo este impedimento de recuperar a própria
experiência. Trata-se de uma deformação da consciência por uma estereotipia nos
modos de se conceber.
29/5/92
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