quinta-feira, 23 de agosto de 2012

SOBRE A PRESSA - Nello de Moura Rangel Neto






"Só agora estou sadio, e era doente, porque meu tempo
galopava e afligia-me o medo do que viria."

A condição poética - Czeslaw Milosz


"Eu tenho pressa, tanta coisa me interessa, mas nada tanto assim..."

Kid Abelha



   Assim como a nostalgia é a saudade do passado, a ansiedade é a saudade do presente e a pressa é a saudade do futuro.

Nello Rangel




Um homem ganhou um carro no bingo da igreja. Ao ir receber o seu prêmio não conseguiu achar a ignição. “Onde é que se liga?” “Esse automóvel não precisa de chave. Ele é especial. Funciona somente com palavras”.“E como é que se dá a partida?” perguntou aflito. “É só dizer: graças a Deus”.“Graças a Deus!”, exclamou.
E foi embora. Pegou a estrada e acelerou. “Graças a Deus! Graças a Deus! Graças a Deus!” E aí, no máximo da velocidade, viu passar a placa: “Perigo, ponte caída”. Percebendo o enorme precipício que se aproximava, exclamou: “Ich, me esqueci de perguntar como se freia essa coisa!” Quando já estava quase despencando, já no auge do desespero, gritou: “Ai, minha Nossa Senhora!!!”
SSSCRIIIINCH!!!! E o carro parou imediatamente, dependurado na beirada do abismo. Ao que ele exclamou, aliviado: “Graças a Deus....”

Anedota popular


Festinatio tarda est (A pressa mais atrasa do que adianta).

Aforismo latino


“Pior, pior... Começamos a olhar o medo... o medo grande... e a pressa... O medo é uma pressa que vem de todos os lados, uma pressa sem caminho...”

João Guimarães Rosa, in Sagarana





A nós , nos cabe andar.

Mas o tempo, os seus passos,

são mínimos pedaços
do que há de ficar.



É perda pura

tudo o que é pressa;
só nos interessa
o que sempre dura.

Jovem, não há virtude
na velocidade
e no voo aonde for.

Tudo é quietude:
escuro e claridade,
livro e flor.

Rainer Maria Rilke: "A nós, nos cabe andar" trad. Augusto de Campos




Parafraseando João Guimarães Rosa, que disse "Toda saudade é uma espécie de velhice", afirmamos aqui, sem medo de errar:
Toda pressa é uma espécie de velhice.







Vivemos em uma época de muita pressa. Temos a impressão de que tudo à nossa volta acontece muito rapidamente. Novidades surgem a todo momento, novas tecnologias, novos aparelhos, novas necessidades que antes nem imaginávamos possuir.

Nesse mundo apressado ou nos sentimos imobilizados, na melhor hipótese, ou ficando para trás, na pior hipótese. Temos uma permanente sensação de desatualização e sucateamento. Essa sensação por vezes nos paralisa, quando quedamos desesperançosos de conseguir mudar a situação. Por vezes nos lança em extrema pressa e agitação, o que acaba por nos deixar precipitados e irreflexivos, e, por isso mesmo, mais adiante restaremos igualmente paralisados por nossas precipitações.

Diz um ditado: “Seja você leão, seja você gazela, corra!”. Ouvimos esse ditado, nas suas mais diversas formas, todos os dias. E saímos correndo. Só lá muito adiante, e se tivermos sorte, é que lembramos: “Ora, eu não sou leão, nem sou gazela, nem ao menos moro na África, o que estou fazendo aqui, correndo como um desesperado?”

Ao consultar um dicionário vemos que a palavra pressa remete a falta de calma, precipitação, afobação, urgência. Sua origem é o vocábulo latino préssus, que significa apertado, imprensado.

O desenho de caricatura de Howard (fig. 1), de autoria de J. B. Priestley ironiza algumas dessas situações, próprias de nossos dias: a pressa constante; a corrida desenfreada, sem rumo e nem sentido; a rivalidade hierárquica; os mecanismos justificadores que dificultam o processo de tomada de consciência.


fig. 1

            Como caricatura, o trabalho de Priestley tem uma linguagem própria. Alguns aspectos dessa linguagem merecem ser ressaltados.

            O primeiro desenho retrata Howard, que diz: “Estou correndo, mas não vou a nenhuma parte”.Esta afirmação inicial encontra-se ressaltada por alguns elementos gráficos presentes na caricatura.

            Howard é o único personagem que tem sombra. Isso ressalta a sensação de que ele não sai do lugar. Também é o único personagem que não tem traços cinestésicos, que indicam movimento (sugerindo que a passagem do personagem deixou uma mancha para trás, tamanha sua rapidez). Esta falta de indicativos de movimento, somada à presença de sombra e às posições dos braços e pernas de Howard - que indicam uma corrida - transmitem com perfeição a sensação de que ele realmente está correndo, mas não sai do lugar.

            A presença dos traços cinestésicos nos outros personagens - Murray, Lucille e Irwin - indicam que eles passam velozmente por Howard. Os traços cinestésicos mais fortes e ao mesmo tempo mais finos, são de Irwin. Isto realça a impressão de que ele é o mais veloz. O desenho de seu corpo chega a ser aerodinâmico sugerindo a forma de uma bala, o que induz à percepção de uma velocidade ainda maior.

            A postura de Howard é inicialmente altiva: costas retas, corpo “empinado”, braços e pernas em posição de resoluta corrida. Quando ele é ultrapassado por Irwin, sua postura se altera. Seus olhos se arregalam e seu desenho aparenta estar incompleto, como se fosse um rascunho. Sua postura se inclina para frente, curvada, perdendo a altivez anterior. A amplitude dos movimentos de suas pernas diminui, seus passos são menores, indicando perda de velocidade.

No último quadro, olheiras profundas indicam o desânimo e depressão que se abateram sobre Howard.
           
            A estrutura vertical descendente escolhida pelo caricaturista contribui na construção dos significados. A verticalização do desenho insinua a presença da hierarquia com seus pressupostos de superior/inferior. O movimento descendente de leitura do desenho insinua a decadência, que culmina no último desenho, onde Howard, com expressão de depressão, parece próximo do “fundo do poço”.

            O autor rompe com a convenção das histórias em quadrinhos de separação em telas retangulares. Os desenhos aparecem sem nenhuma separação, exceto o vazio que os circula. Também não utiliza outra convenção: os balões onde ficam os textos. Isto ressalta ainda mais o vazio da caricatura.

            Todos esses elementos gráficos transmitem com propriedade o clima da caricatura: a absurda pressa em que vivemos, numa absurda corrida desenfreada que não sai do lugar, em busca de lugar algum. Uma corrida sem sentido que conduz à imobilidade aflita, como se, ao mesmo tempo, chicoteássemos e freássemos um cavalo de montaria.

            Nesse clima, o tempo galopa e escapa de nossas mãos. Ficamos aflitos, com medos supersticiosos do que pode nos acontecer. Tomados de pressa e medo, e com a sensação de que estamos ficando para trás, sucateados, acabamos por perder a prudência e a flexibilidade. Entramos em cobiça, “em busca do tempo perdido”, e na voracidade, não fazemos sequer os pequenos atos estratégicos que eram possíveis. Como que em um círculo vicioso, a própria pressa decorrente da vivência que estamos atrasados, acaba por paralisar ainda mais nosso movimento.

            Por três vezes na caricatura, Howard se justifica, com leituras apressadas para as ultrapassagens que sofre. Diz que Murray é uma boa pessoa, e que Lucile faz uso de seu belo rosto, e que, por estes motivos, não vai amargurar-se. Somente quando ultrapassado por Irwin ele se altera. Neste momento Howard poderia ter evitado a justificação lamentadora. Poderia ter entrado em pasmo-surpresa-admiração, parado e perguntado pelo absurdo da situação. Assim poderia se aproximar do conhecimento, sair da inconsciência justificadora e se alterar. Poderia assim perceber o mal em si mesmo, sua inveja, rivalidade, pressa ou medo. Poderia perceber que havia ido longe demais. Mas não. Howard não ficou em silêncio. Entrou em pasmo-temor, interditando o conhecer. E, em seguida, em pasmo-desprezo, caindo novamente em lamentações justificadoras e projetivas. Irwin vira assim uma “má pessoa”, depositário exclusivo do mal que Howard recusa a perceber em si.
           
A caricatura em questão trabalha um paradoxo: desde o início Howard diz que não consegue sair do lugar, “não vai a lugar nenhum”[1]. Mas em nenhum momento ele cogita parar, suspender mesmo que momentaneamente o desespero, tomar consciência do disparate. A situação é absurda, mas não se considera a possibilidade de mudança de direção, ou de fundamento. Howard continua brigando com o tempo, correndo atrás de não se sabe o que, e dissipando suas possibilidades de alteração, como que preso a um destino predeterminado e imutável.

            Para poder sair dessa situação ele teria que parar e pensar. Houve uma chance quando ele entrou em pasmo. Neste momento ele poderia ter recuperado a própria experiência, parado e se perguntado sobre o absurdo de sua situação. Mas ao invés disso ele entrou em pressa de definir logo a situação, sem deixar silêncio ou vazio. Entrou em pasmo-temor-desprezo e, com receio de revelar qualquer mal em si mesmo, caiu em lamentação e rancor, culpando projetivamente Irwin por sua infelicidade.

Semelhante dificuldade teve o piloto Ayrton Senna.

Senna foi eleito recentemente o maior piloto de todos os tempos. Apesar de possuir somente 3 títulos mundiais, sendo sobrepujado por Schumacher e Fangio, com 7 e 5 títulos, respectivamente, sua qualidade técnica ainda é lembrada por todos aqueles que gostam de corridas de carros.

Sua morte trágica, ocorrida durante a prova de Monza, em 1994, traz consigo considerações importantes.

Naquele ano muitas mudanças foram realizadas nos carros da formula 1. Os aerofólios estavam mais estreitos do que no ano anterior, assim como os pneus. O controle de tração, os freios ABS e a suspensão ativa, recursos tecnológicos que facilitavam a dirigibilidade dos veículos, também foram proibidos no ano anterior. O objetivo era baratear os custos das equipes e deixar os carros mais lentos e com mais possibilidades de ultrapassagens por prova. Mas os carros não ficaram mais lentos. Senna bateu o recorde de velocidade da pista neste fim de semana. Os motores aspirados usados na época já estavam mais velozes que os motores turbo do passado, motores esses que haviam sido proibidos justamente por serem velozes demais.

As queixas de que os carros estavam mais inseguros apesar de continuarem excessivamente velozes eram constantes. O próprio Senna havia apontado esse problema ao reclamar: “Os carros estão rápidos demais e difíceis de controlar”.

No primeiro dia de treinos Senna ficou transtornado após acidente com o piloto Rubens Barrichelo. Este, motivado pelo primeiro pódio da carreira conseguido na corrida anterior, exagera um átimo na aceleração de seu carro e  decola sobre uma zebra da pista, bate e salta acima dos pneus de proteção e se arrebenta numa tela protetora. Quase que milagrosamente sobrevive com poucas lesões.

No dia seguinte Senna assistiu pelo monitor dos boxes ao acidente que matou o piloto Ratzenberger. Ao ver as equipes de socorro iniciarem uma massagem cardíaca ainda no asfalto do circuito se descontrolou, colocou as mãos no rosto e chorou convulsivamente durante 15 minutos.

Após 12 anos sem um acidente fatal na formula 1 um piloto quase morre e outro falece na pista. E no mesmo fim de semana Senna também morreria.

A morte de Ratzenberger levou Senna a liderar um movimento para a suspensão dos treinos ou até mesmo da corrida. Ao falar ao telefone com a namorada, após ir ao local do acidente fatal do piloto austríaco, Senna afirmou que não ia mais correr de carro no dia seguinte. Mais tarde, já à noite, mais calmo, falou para a namorada não se preocupar. Disse: “Não se esqueça de uma coisa, eu sou forte, muito forte”.

Pouco antes da corrida, na hora da concentração, ficou 5 minutos parado olhando o carro. Seu comportamento incomum chamou a atenção de jornalistas já acostumados com sua rotina.

Por que Senna mudou de opinião e decidiu correr? Se havia um piloto que reunisse em si todas as qualidades técnicas para julgar os absurdos que estavam ocorrendo, este piloto era ele. Ele chegou a comunicar que não correria ao seu chefe, Frank Willians, que autorizou o que ele decidisse. Mas parece que de alguma forma Senna foi se acalmando e à noite já tinha mudado de opinião e decidido correr.

Decisão diferente tomou Emerson Fittipaldi, em 1975, no GP da Espanha. Ao se prepararem para iniciar os treinos para a prova os pilotos perceberam que as condições de segurança da pista eram sofríveis, particularmente no que dizia respeito aos guard-rails, precariamente instalados. Emerson liderou um movimento pela não realização da prova. As pressões e ameaças dos organizadores, dirigentes e patrocinadores foram imensas, algumas providências paliativas foram tomadas e a maioria dos pilotos concordou em correr.

Emerson, ameaçado até de exclusão definitiva da Fórmula 1, simulou problemas mecânicos para não se classificar e não correu. Durante a prova grave acidente matou 5 pessoas, quatro delas instantaneamente, e deixou muitos feridos.

Neste caso os fatos posteriores deram razão a Fittipaldi. Mas quando ele decidiu não participar ele correu o risco de que a prova transcorresse sem incidentes. E aí ele seria criticado, de piloto covarde, desprovido da coragem necessária à profissão. Talvez pelo fato de ser jovem, recém tornado campeão mundial, Emerson não se abalou e manteve sua decisão.

Ayrton Senna já não era tão moço, tinha então 34 anos e o campeonato de 1994 estava sendo o pior de sua vida. Foi a primeira vez que ele não marcou nenhum ponto nas duas primeiras corridas. Rodou na primeira prova e foi tirado da pista na primeira curva da prova seguinte. Schumacher, jovem revelação, estava 20 pontos à sua frente. Como poderia deixar de correr? Os outros diriam que ele já estava ficando velho, que perdera o arrojo, que já não tinha a coragem que teve em algum momento de sua vida, que devia agora dar espaço para a nova geração de pilotos que surgia.

Alguns desses pensamentos devem ter passado pela cabeça de Senna durante a tarde da véspera da prova. De alguma forma ele anestesiou sua compreensão inicial, de que não deveria correr no dia seguinte. E a noite comunicou a namorada que participaria da prova.

Sabemos hoje que o principal elemento causador do seu acidente foi o rompimento da barra de direção de seu Willians. Ele inclusive já havia se queixado que o carro trepidava, o que talvez pudesse ser causado pela fadiga do material. Mas este fato não invalida o quadro de risco muito aumentado de todos os automóveis participantes, risco esse causado primordialmente pelas mudanças realizadas nos veículos neste ano. Pois cabe lembrar neste GP, o primeiro de alta velocidade do ano, Barrichello se acidentou muito gravemente e Ratzenberger e Senna morreram. Além disso, na corrida seguinte, já em um circuito de baixa velocidade, mais um piloto se acidentaria com gravidade, ficando muitos dias em coma.

E Senna percebeu os absurdos, tomou a decisão adequada, mas foi lentamente se anestesiando e tragicamente mudou de opinião.

Conan Doyle, através de seu famoso personagem Sherlock Holmes, no  romance “A cidade do medo”,  diz de “Um homem que não pode falhar: uma pessoa cuja posição depende do fato que tudo que faz deve dar certo”. Esse homem parece-se com Howard e Ayrton Senna. Um homem que não pode falhar está condenado à pressa e ao medo.  O medo de falhar o leva à impulsividade e ao medo de parar e perceber-se falho ou errôneo.

Sherlock Holmes seria a antítese deste tipo de homem, uma vez que nas suas historias não se precipita nem se apressa. É um personagem que considera com cuidado a si mesmo e à realidade a sua volta. Trabalha com hipóteses e serenamente espera que a realidade se manifeste por inteiro antes de fechar um raciocínio. Não é desconfiado, mas tem a coragem da prudência. Sua atitude cuidadosa revela a sua humildade. Ele sabe que não sabe tudo.

É possível ultrapassar quem tem esperanças, projetos, e caminha passo a passo, ou engatinha palmo a palmo, na direção daquilo que lhe é vital? É possível ultrapassar quem é humilde e sabe reconhecer o que sabe e o que não sabe?

É muito interessante comparar a etimologia da palavra humildade com a etimologia da palavra humano.

Humildade vem do latim humilìtas,átis , que significa de pouca elevação, de pequena estatura. Humano se origina a partir da palavra latina humánus,a,um, que indica o que é próprio do homem.

          Os dois vocábulos têm em comum o prefixo HUM, do latim húmus, significa terra, solo. Humilde nesse sentido indica o que permanece na terra, não se eleva da terra, aquilo que é humilde, de baixa estatura e por isso mesmo próximo ao solo. E Humano indica por sua vez habitante da terra, por oposição primeiro aos deuses, depois aos outros seres.

É de se notar que as duas palavras, humilde e humano, têm a mesma cognação, ou seja, vem de uma mesma raiz. Isso sugere uma íntima correlação entre os termos. Poderíamos então imaginar, em virtude desta correlação, que humano e humilde são termos irmãos. E poderíamos até nos arriscar a dizer que seria próprio do humano a humildade, o saber-se próximo do chão, o saber-se finito e limitado. O ser humano seria assim um ser de aprendizagem, um ser que se constitui na aprendizagem durante toda a sua vida, nunca chegando a estar pronto.

Mas negamos essa condição de humanos aprendizes, e almejando a perfeição - perfeição esta inumana por definição - vivemos numa busca desesperada do sucesso, do não falhar, do chegar, ver e vencer absolutos. E assim vivemos com pressa, medo e desesperança.

Há autores que consideram a saudade como sendo decorrente de projetos vitais interrompidos, um tipo de paralisação no passado, pela não realização de algo que era vital para o sujeito. Nesse contexto a pressa não seria um tipo de saudade prospectiva, uma saudade do futuro?

Assim como a nostalgia é a saudade do passado, a ansiedade é a saudade do presente e a pressa é a saudade do futuro.

Temos saudade do passado quando poderíamos ter feito algo naquele tempo, e era muito importante que ao menos tentássemos, mas não o fizemos e então paralisamos, nostálgicos. Ter saudade do futuro, por seu lado, seria decorrente da pressa, do imediatismo de querer chegar ao sucesso futuro antes mesmo que o futuro chegue. O medo de falhar e a vontade de certeza absoluta diante do futuro nos jogam em um estado de pressa, e acabamos aprisionados no futuro, pensando sempre no futuro no afã de conseguir certeza sobre a realização de nossos projetos. E acabamos vivendo de forma provisória, descolados do presente, descolados do que seria possível que fizéssemos já, descolados daquilo que já está ao alcance da nossa mão, de cada pequeno passo que poderíamos dar na nossa auto-construção, com calma e confiança, no desejo de se preparar para o futuro que virá. 

            A nostalgia, a saudade do passado, teria assim um vazio em si, daquilo que poderia ter sido e que não foi. A pressa, a saudade do futuro, teria o vazio da ansiedade, daquele que nem vive o seu presente, pois está em aflito e paralisado pelo medo do que virá, nem constrói o seu futuro, pois se precipita na pressa e no imediatismo.

            Para nos liberarmos das amarras da pressa, a estereotipia de nossos dias, é preciso parar e pensar. Não temer a tomada de consciência do mal que nos cabe, considerar a própria experiência e ter os olhos abertos para ver a realidade.

           



BIBLIOGRAFIA


CARROLL, Lewis – Através do espelho e o que Alice encontrou lá. – Summus Editorial. São Paulo, 1980.

ROSA, João Guimarães – Sagarana – Editora Record – Rio de Janeiro, 1984.

PRIESTLEY, J. B. – El hombre y el tiempo. Aguilar Ediciones, Madrid, 1964.









[1] O paradoxo de correr desesperadamente sem sair do lugar foi muito bem descrito por Lewis Carroll, em seu livro “Através do espelho e o que Alice encontrou lá”, que transcrevo abaixo:
“... Quase de imediato, não se sabe bem como, puseram-se a correr.
Alice nunca pode saber direito, quando pensou mais tarde, como é que isso tinha começado: tudo que ela se lembrou é que as duas estavam correndo de mãos dadas, e a Rainha era tão veloz que tudo que ela podia fazer era tentar acompanhá-la. Mesmo assim, a Rainha não se cansava de gritar “Mais depressa! Mais depressa!” Alice não podia ir mais depressa, embora mal tivesse fôlego para dizê-lo. (...)
E iam tão velozes que pareciam deslizar pelos ares, quase sem tocar o solo com os pés, até que de súbito, justo quando Alice parecia morrer de cansaço, elas pararam. Alice se viu sentada no chão, aturdida e sem fôlego. (...) Olhou em volta de si muito surpreendida. – Ora essa, acho que ficamos sob essa árvore o tempo todo! Está tudo igualzinho!”

3 comentários:

Públio Athayde disse...

Absolutamente espetacular seu texto, Nello. Fiquei encantado. Tenho me julgado muito feliz, principalmente em relação a todo mundo, por me dar tempo para fruir montes de coisas, comida que faço, vinho, uma poesia e o luar. Vejo as pessoas repetirem quase em uníssono que a vida está uma correria. A minha não, eu decidi que não seria assim, há muito tempo... E julgo que já vivi muito mais de três vezes a vida de outras pessoas de nossa idade que correm o tempo todo. Grande abraço.

Unknown disse...

Ao pensar na pressa, lembro-me de alguns valores, práticas e costumes de certas culturas orientais, as quais primam por ir na direção oposta da cultura capistalista, dita selvagem, que além de tudo, representa um estupro do tempo psicológico. É muito desconfortável e alienante flagar que na duração do seu almoço, a mente não usufrui da temporalidade da refeição e do que ela pode trazer de prazer pelo paladar ou visualização do alimento, mas desloca-se doentiamente para seis ou sete problemas a frente, que torturam a mente, eclipsando o ritual alimentar e o próprio significado da dieta. Quizera eu poder, como fazem algumas japonesas, tomar o chá e neste intervalo só pensar na aromática planta crescendo do ventre da terra, raizes tenras, caule carnudo e folhas nobres.

Anônimo disse...

Muito bom! Obrigada pelo belo texto!