quinta-feira, 21 de junho de 2012

Raiva no Rosa

“No mais, mal me lembro, mas sei que, naqueles dias, eu estive muito maltrapilho. Em que era que eu podia achar graça? De manhã, quando eu acordava, sempre supria raiva. Um me disse que eu estava estando verde, má cara de doença - e que devia de ser de fígado. Pode que seja, tenha sido. O Paspe, que conzinhava, cozinhou pra mim os chás: o de macela, o de erva-doce, o de losna. Ôi. Dor, memso, nenhuma eu não tinha. Somente perrengueava.

Do que de uma feita, por me valer, eu entendi o casco de uma coisa. Que, quando eu estava assim, cada de-manhã, com raiva de uma pessoa, bastava eu mudar querendo pensar em outra, para passar a ter raiva dessa outra, também, igualzinho, soflagrante. E todas as pessoas, seguidas, que meu pensamento ia pegando, eu ia sentindo ódio delas, uma por uma, do mesmo jeito, ainda que fossem muito mais minhas amigas e eu em outras horas delas nunca tivesse tido quizília nem queixa. Mas o sarro do pensamento alterava as lembranças, e eu ficava achando que, o que um dia tivessem falado, seria por me ofender, e punha significado de culpa em todas as conversas e açoes. O senhor me crê? E foi entao que eu acertei com a verdade fiel: que aquela raiva estava em mim, produzida, era minha sem outro dono, como coisa solta e cega. As pessoas não tinham culpa de naquela hora eu estar passeando pensar nelas. Hoje, que enfim medito mais nessa agenciaçao encoberta da vida, fico me indagando: será que é a mesma coisa com a bebedice de amor? Toleima. O senhor ainda me releve. Mas, na ocasiao, me lembrei de um conselho que Zé Bebelo, na Nhanva, um dia me tinha dado. Que era: que a gente carece de fingir às vezes a raiva que tem, mas raiva mesma nunca se deve de tolerar de ter. Porque quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a idea e o sentir da gente; o que isso era falta de soberania, e farta bobice, e fato é. Zé Bebelo falava. ”


João Guimarães Rosa - Grande sertão: veredas


Nenhum comentário: