sexta-feira, 29 de junho de 2012

João Cabral de Melo Neto - sobre o belo e o novo

João Cabral de Melo Neto, em seu poema "Morte e vida severina" conta da vida do retirante nordestino. É um relato de dor e profunda miséria mas que, mesmo aí, mostra as brechas de vida que sempre existem. 
O trecho abaixo fala do nascimento do filho do retirante. Nasce o menino, na seca, na dor, na fome. E ele é magro e franzino, um fiapo de gente e um mundo de esperanças.

E por ser esperança, é belo.




Morte e Vida Severina  (trecho)


"De sua formosura
já venho dizer:
é um menino magro,
de muito peso não é,
mas tem o peso de homem,
de obra de ventre de mulher.

De sua formosura
deixai-me que diga:
é uma criança pálida,
é uma criança franzina,
mas tem a marca de homem,
marca de humana oficina.

Sua formosura
deixai-me que cante:
é um menino guenzo
                         (muito magro, fraco)
como todos os desses mangues,
mas a máquina de homem
já bate nele, incessante.

Sua formosura
eis aqui descrita:
é uma criança pequena,
enclenque e setemesinha,
                 (adoentado, ferido)(de sete meses, pequenina)
mas as mãos que criam coisas
nas suas já adivinha.

De sua formosura
deixai-me que diga:
é belo como o coqueiro
que vence a areia marinha.

De sua formosura
deixai-me que diga:
belo como o avelós
                           (planta do agreste)
contra o Agreste de cinza.

De sua formosura
deixai-me que diga:
belo como a palmatória
na caatinga sem saliva.

De sua formosura
deixai-me que diga:
é tão belo como um sim
numa sala negativa.

É tão belo como a soca
que o canavial multiplica.
Belo porque é uma porta
abrindo-se me muitas saídas.
Belo como a última onda
que o fim do mar sempre adia.
É tão belo como as ondas
em sua adição infinita.

Belo porque tem do novo
a surpresa e a alegria.
Belo como a coisa nova
na prateleira até então vazia.
Como qualquer coisa nova
inaugurando o seu dia.
Ou como o caderno novo
quando a gente o principia.

E belo porque com o novo
todo o velho contagia.
Belo porque corrompe
com sangue novo a anemia.
Infecciona a miséria
com vida nova e sadia.
Com oásis, o deserto,
com ventos, a calmaria."



Talvez não exista trecho mais bonito para dizer da beleza e do novo, aqui como se fossem quase que a mesma coisa. O novo - toda a nossa esperança, toda nossa liberdade, toda nossa possibilidade de soberania - ao qual tememos, só por não sabermos, por não termos a certeza, de onde e como vai desembocar.