domingo, 2 de agosto de 2015

Ao alcance da mão


- Estou bem.
- Que bom. E Por que?
- Não sei. Estou bem. Meio à toa, sem motivo. Outro dia escutei uma música e fiquei bem. Só por isso! Imagina!



O grupo todo estava bem deprimido. E era um grupo grande, umas doze pessoas. Eu e a outra terapeuta começamos o grupo perguntando o que que eles gostavam muito e que a muito tempo não faziam.
- Como assim?
- O que você gosta muito e a muito tempo não faz?
- Mas que tipo de coisa? Viajar pro exterior, por exemplo?
- Não! Uma coisa mais simples. Pequena mesmo. Que seja muito fácil de fazer. Mas que, mesmo assim, a muito tempo você não faz. 
- Eu gosto de sorvete de creme... e a muito tempo não como...
- Isso! Esse exemplo tá ótimo! Sorvete de creme vende em todo lugar. Nem precisa comprar o potão. Pode comprar uma bola só.
- Pois é. Gosto muito. E, sei lá... deve ter muitos anos que não como...
- Por que? 
- Taí uma boa pergunta. Não sei o porque.
- Pois eu gosto de conversar com Tia Babita e tem um tempão que não converso com ela.
- Ela mora longe?
- Mora no mesmo quarteirão que eu, tá velhinha... sempre penso em ir lá. Mas nunca vou.
- Eu gosto de andar de bicicleta.
- Eu de dobradinha.
- Tem gosto pra tudo...
E foi disparando. Cada um dizendo de uma pequena coisa, de um detalhe, de uma miudeza, todas simples, ao alcance da mão, mas que já há muitos anos não eram feitas. Mas lembrar também é uma forma de viver. E narrar é uma forma de lembrar. E cada um dizia, um outro escutava, achava graça, e lembrava de alguma coisa que também gostava, que achava bonita, e que podia até pegar se quisesse.
O grupo já tinha outro tom. Semblantes mais leves. Olhares trocados. Uns caçoando amorosamente doutros. 
Terminamos a reunião com uma poesia:

"Enfim, o que importa?
Saber em qual porta tentar?
Saber como continuar?
Cair, deitar, levantar?
Enfim, algo importa?
Topo, auge, ponta ou meta,
cima, baixo, melhor ou pior:
Algo me toca?
E então, porque tanto medo?
Se nada tem relevância,
se não se busca o aconchego?
Enfim, o que fica?
Se se pode morrer tão cedo,
se o tempo sempre marca e envelhece?

Na retina das lembranças se há amor
a saudade se distancia.
Se se morre cedo
durante alguns anos aqui esteve
(nunca agradeci os dez anos que tive, sempre xinguei os setenta que me foram tomados).
E o tempo também nós trás uma sabedoria infantil
de não perder mais tempo
de se fazer o que gosta e por inteiro
de amar intensamente.

Está ao lado
de tão perto
singelo
ao alcance da mão
                basta pegar."

Por fim, na saída da reunião cada qual levava um dever de casa. Fazer, antes do próximo encontro, aquilo que amava e não fazia a tanto tempo.



- Quer dizer então que uma música lhe deixou bem por um dia inteiro?
- É... Não que eu esteja toda boa. Não estou. Ainda ando meio triste, às vezes, lembrando do Carlos. Ainda não entendo muito bem porque não deu certo. É certo que desde o início, tenho que admitir, não prometia muito né? Mas, apesar disto, não chego a estar triste mesmo. Engraçado... acho que devia estar mais triste...
- Luíza, quantos anos você ficou sozinha, sem nem procurar por alguém?
- Dez.
- Pois é. Dez anos. De luta, muita luta. Você precisava trabalhar, sua família teria que devolver a casa onde moravam e você precisou resolver isso. Trabalhou, construiu sua casa nova, levou sua família pra lá. Um período no qual você mais sobreviveu do que viveu. Agora essa etapa acabou e você começa a olhar em torno de si. Vê o Carlos. Se aproxima e acaba envolvida. Mas tudo acaba muito rápido. E você ficou bem mal. Mas já tá melhorando. Porque está recomeçando a viver. Ver o mundo, as pessoas, conviver, procurar, amar. Ter coragem de pensar que a felicidade também pode ser para você. Que a vida está toda aberta no adiante, que muito ainda você há de viver, que em muitas você ainda pode se transformar. Sofrimentos também serão vividos, é claro, ninguém escapa disso. Mas você sente que agora pode recomeçar.
- Ah! Entrei pra aula de dança também! Sempre quis aprender a dançar!
- Mas você tá impossível! Que bom! Dançar é bom demais!
- Sou dura demais. Mas começo segunda.
Nossa, essa música fez milagre nessa semana! Que música é essa?



Um pedido de graça, um pedido de vida, um afã de esperança... música assim faz mesmo bem.

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