quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Pombo correio



Eduardo chegou absolutamente contrariado no consultório. Não sabia o que estava fazendo ali. Empresário de sucesso, muitíssimo rico, tudo ia bem em sua vida... Mas vem o médico dizendo que aquele mal estar terrível que ele sentia não era nada no coração, que ele não ia morrer de um ataque cardíaco, que eram crises de pânico e que ele precisava procurar um psicólogo... E chega ele, chateado mesmo por estar no consultório. Aqui estava só por não aguentar mais as crises que se repetiam.

Ele tinha um pequeno banco, mas grande o suficiente para que possuísse uma fortuna. Tinha um avião e um helicóptero, mas que não tinham utilidade pra ele. “Mas o que eu ia fazer com o dinheiro? Precisava gastar com qualquer coisa...” Tinha um Lamborghini na garagem, que só usava para sair no sábado de manhã, dar uma passada, acelerando, na porta da casa dos conhecidos para produzir inveja, e voltar pra casa, estacionar, e pegar Fiat Palio que gostava mesmo de dirigir. Eduardo dava ao filho de 6 anos 200 reais por dia para que ele lanchasse na escola.

- O que que tem? Eu não tinha esse dinheiro pra lanchar quando eu era menino...
- Você vai estragar seu filho. Ele não vai ter nenhuma noção de valor.

Ao contar sua história relembrou que resolveu ficar rico aos 11 anos de idade. Seus tios paternos eram bem de vida. Seu pai tinha o mesmo padrão, mas quebrou. E a família começou a viver com alguma dificuldade. Que nem era tanta, mas era o suficiente para que ele se sentisse muito humilhado frente aos tios ricos. “Meu pai era bom demais, honesto demais... ninguém vira nada desse jeito...” Um dos tios era o mais rico de todos e trabalhava com agiotagem. E ele resolveu, aos 11 anos, que ficaria mais rico que esse tio. E conseguiu. E agora todo esse mal estar... ele não entendia o que lhe acontecia.

Eduardo também contou que mais novo, com uns 9 anos, seu pai lhe presenteou com uma coleção de pombos correio. Eram o xodó de seu pai. Levava-os ao sítio e eles voltavam sozinhos para o apartamento. Sabendo que o filho tinha pelos pássaros a mesma adoração, presenteou-o com eles. E ele cuidou dos pássaros até quando resolveu ficar rico, aos 11 anos.

- A gente precisa se livrar das bobagens pra enfrentar a vida. Vendi minha coleção.
- Pra quem?
-Para um clube de tiro.
- !?
- Que que tem? Que cara é essa?
- Pra um clube de tiro?!
- É. Não tem nada demais...
- Pelamordedeus... Clube de tiro não! ... Você deve ter ficado arrasado...
- Claro que não! Fiz o que tinha que ser feito...
- Ficou sim... não é possível que não tenha sentido. Você adorava aqueles pombos...
- Não fiquei.
- Vamos apostar? Aposto que ficou. Posso ligar pra sua mão e perguntar se ela se lembra disso?
- Claro! Apostado. Pode ligar.

-Alo? Dona fulana? Aqui quem fala é o beltrano, psicólogo do seu filho... Tudo bom? ... Estamos com uma dúvida aqui e eu acho que a senhora pode nos ajudar... Lembra  de quando Eduardo vendeu a coleção de pombos correio que ganhou do pai? Lembra!? Que Bom!

- Claro que me lembro! Ele chorou três dias...
- A senhora pode dizer isso pra ele?
Eduardo ficou estarrecido...
- Mas eu não me lembrava... Como é que pode? Agora lembro, ela tem razão... Mas eu não me lembrava...

- Você teve que se anestesiar pra dar conta de fazer tudo que achava que devia, pra ficar rico... Mas a anestesia nunca é completa... A dor tá voltando agora, ou sobre a forma de crises de pânico, ou sobre a forma de saudade de tudo que você deixou de viver, que jogou fora, pra conseguir o que queria... Sem raízes tudo é vertigem. Você abandonou seus valores mais importantes pra dar conta de ser duro, como achava que deveria ser...

A anti-intracepção é uma das escalas de avaliação da mentalidade autoritária, propostas pelo sociólogo Adorno. Diz respeito a uma dificuldade de voltar para a própria experiencia, fazer uma introspecção verdadeira e saber razoavelmente bem o que se sente e pensa. Se caracteriza por uma irritação e impaciência frente ao que é subjetivo e imaginário. E usa de vários mecanismos de defesa pra se desviar de suas próprias verdades internas.

Há várias formas da anti-intracepção se manifestar. Muitas vezes ela se revela decorrente de eventos fortemente traumáticos no passado. O sujeito evita parar e pensar, pois teme que, se o fizer, as terríveis vivencias voltarão.

O empresário referido nesta postagem possuí outra forma de anti-intracepção. Apesar de existir na sua história um aparente "trauma" - as relativas dificuldades financeiras na infância - esse episódio se caracteriza mais por vivencias de humilhação e vergonha, e não de panico, medo ou terror, como esperado em eventos verdadeiramente traumáticos. Nestes casos o núcleo é muito associado a uma mentalidade excessivamente convencional, presa a estereótipos e modelos rígidos. Mais do que não poder pensar por causa de um trauma, estamos diante de um não conseguir pensar, por estar fixado a categorias de pensamento que não permitem a ampliação da consciência, por fechar muito as possibilidades de outras leituras e interpretações. 




Um comentário:

Claudia Souza disse...

Isso significa que o medo, o panico e as reacoes que temos em determinadas situacoes e por causa da rigidez de pensamentos ou dos pensamentos que cultivamos pela rigidez que nos e colocada, pela criacao, valores etc?