quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Sobre a amizade e a reserva


- Eu não tenho amigos.
- Você tem sua irmã. Ela é sua amiga.
- Minha irmã não vale! Eu não tenho amigos de fora da minha família. Eu não tenho uma amiga com quem possa desabafar.
- Irmã vale sim. Ela era praticamente sua inimiga, e vocês se reaproximaram. De modo que foi uma conquista.
- Mas eu queria ter amigos e amigas que não fossem meus parentes.
- Eu não vejo você cultivar amizades. Chamar, convidar... correr o risco...

Ana fez essa queixa quando, na comemoração de seu aniversário, compareceram sete pessoas. Todas parentes. No ano seguinte parece que ela mudou algo. Sessenta pessoas compareceram ao seu aniversário. Todos amigos? Certamente não. Eram colegas, conhecidos e talvez até cúmplices ou comparsas. Mas de qualquer forma, se deram ao trabalho. Foram em casa, tomaram um banho, trocaram de roupa, compraram um presentinho e foram ao barzinho, encontrá-la. Gostavam dela, quiseram se aproximar. Colegas também são importantes. E dentre esses, alguns anos mais tarde, duas ou três pessoas tinham se tornado realmente amigas.

O que mudou?

Em primeiro lugar, Ana se colocou o problema. E se dispôs a arriscar. Arriscar a convidar as pessoas a participarem da sua vida. Arriscar a sair da reserva que ela julgava ser um lugar seguro. Arriscar a se expor, entrar em relação, trocar, enriquecer, mesmo que com alguns percalços.

Carlos Dummond de Andrade tem um belo poema, que vinha escrito atrás de uma antiga nota de 50 cruzados novos:

“Eu preparo uma canção
Em que minha mãe se reconheça,
Todas as mães se reconheçam,
E que fale como dois olhos.

Caminho por uma rua
Que passa em muitos países.
Se não me veem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.”

Quem nunca passou por essa situação? Se defrontar com um antigo amigo na rua, por acaso. Parece que é ele, mas não temos certeza... quantos saúdam os velhos amigos? Ou a maioria faz como eu fazia, fingia que não via... vai que não é ele? Vai que ele não me reconhece?

Nós não estamos acostumados a manifestar o amor. Manifestamos o ódio, a tristeza ou a indiferença com muito mais facilidade. Mas manifestar o interesse, o amor, abrir-se para hospedar o outro, se expor? Dificilmente o fazemos.

Eu não conhecia bem o Alberto. Somente tinha passado uma tarde fazendo macarrão com ele, para uma turma de amigos da minha esposa. E algumas semanas depois ela me perguntou se eu queria ir a um churrasco dessa mesma turma. Perguntei se Alberto iria. Ela disse que não sabia, na verdade ele não era da turma, era irmão de uma amiga e só fez o macarrão porque cozinhava muito bem. Liguei pra casa deles, a irmã atendeu. Pedi que chamasse o irmão.

- Alberto, sou eu, fulano, tá lembrado? Marido da fulana, macarrão a tarde toda...
- Ah! Claro... Tudo bom?
- Tudo bem... Estava conversando com minha esposa aqui... Você está sabendo do churrasco?
- Ah... Sei... Parece que vai ser na casa da Beltrana né?
- Isso. Você vai?
- Não sei... Ainda não tinha pensado direito nisso. Por quê?
- Porque eu só vou se você for...

E virou um dos meus melhores amigos.

Com José foi parecido. Estávamos eu e minha esposa, almoçando em um shopping quando ele passou. Conhecíamos-nos superficialmente. Conversamos um pouco... Tudo bom? Comprando tinta pra pintar o apartamento também? Ich... Cuidado com o pintor, se pagar antes ele some... 

Sempre tive uma simpatia por ele. Parecia-me uma boa pessoa, um cara legal. Ele estava acompanhado da namorada, que não conhecíamos. Perguntei:

- Vocês vão almoçar? Vão se servir na comida a quilo?
- Isso.
- Então por que vocês não se servem e vem sentar aqui com a gente?
- Tudo bem pra você? – ele perguntou para a namorada que não nos conhecia.
- Tudo.
- Então tá.

E se sentaram conosco. Deviam ser meio dia, uma hora. Quando finalmente nos levantamos, depois de cafezinho, sorvete, chope e batatinhas, já era noite. Tornou-se um de meus melhores amigos. Mas nada teria acontecido se eu não tivesse arriscado o convite.

Nós não estamos habituados a manifestar o amor, o interesse.

A amizade demora um pouco. É preciso, como os antigos diziam, comer “uma saca de sal juntos”. Leva tempo e têm acidentes de percurso. Algumas vezes, fatais. E a amizade acaba. Mas outras, não. E a amizade tem tanto a nos oferecer...

Santa Tereza Dávila diria: “Oh! Como é bom o entendimento entre duas almas. Há sempre o que dizer sem cansaço!”

E a maior parte das pessoas está tão só. Nunca houve tantos. Nunca houve tantos tão sozinhos. Bons anos atrás conhecíamos quase todos que pudessem nos interessar. Nas praças, nos adros das igrejas, nas escolas, nos mercados, encontrávamos praticamente todo mundo. Agora não conhecemos nem 10 por cento das pessoas do nosso prédio. Tão próximos e tão distantes.

Daí a popularidade das salas de bate papo, dos sites de relacionamento e outros mecanismos virtuais. A internet é a nossa ágora, nossa praça pública.

Mas temos que preservar alguma intimidade, temos que preservar nosso espaço pessoal, e não se expor tanto. É certo que temos sim que preservar um espaço pessoal e alguma intimidade. Mas não é disso que estou falando. Estou falando de uma reserva que não diz respeito a esse espaço, que não diz respeito a uma sozinhez inevitável, da qual nos falou Paulo Mendes Campos, em sua crônica “Para Maria da Graça”. Vamos viver nossa vida e morrer nossa morte. Ninguém fará isso por nós. E é bom que aprendamos a ficar bem mesmo quando sozinhos. Mas reserva é outra coisa...

Quando se viu infértil Pedro ficou abaladíssimo. E não esperava ficar assim. Sempre achou muito boa a hipótese de uma adoção. Mas sua esposa queria gerar um filho. E Pedro se viu como responsável pela infelicidade dela. Agoniado, conversava com muitos conhecidos a respeito. Sua esposa não fazia o mesmo. Abriu-se a respeito de seu sofrimento com pouquíssimos. Pediu inclusive que Pedro não comentasse com a família dela, tinha medo que eles se intrometessem demais. Pedro respeitou seu pedido. Mas depois de uns meses disse a ela:

- Você deveria conversar mais sobre nossa dificuldade de ter filhos, se abrir com mais pessoas.
- Eu não gosto que as pessoas se intrometam na minha vida.
- Cada vez que converso com alguém estou elaborando melhor tudo que tá acontecendo comigo. Sou eu que estou estéril, nem é você. Você precisa dividir isso com alguém.
- Não me sinto bem em falar disso.
- Nesta reserva você acaba muito sozinha e perdida na sua dor.

A reserva é um tipo de solidão dolorosa que amplifica ainda mais – e desnecessariamente – nosso sofrimento. Ao invés de nos proteger nos deixa ainda mais frágeis e vulneráveis. Nós precisamos dos outros, precisamos conviver, trocar experiências, compartilhar. Como tão bem disse Julian Marias “Animais coexistem. Objetos coexistem. Seres humanos convivem”. Se alguém tentar se intrometer em demasia na nossa vida, ou se aproveitar da situação para nos manipular, cabe a nós impedir que isso aconteça. E quanto menos reservados formos, mais teremos condições de nos defender, pois saberemos melhor como conviver.

Por fim, uma entrevista de Cornélio Pena. Um dos mais belos textos que conheço. E que fala tão bem da saudade a que estamos condenados se não conseguimos quebrar as barreiras de nossa reserva.

“Minha mãe era uma figura de constante e misteriosa doçura, sempre mergulhada em um sonho longínquo, como se toda ela estivesse envolvida em seu manto de viuvez, de crepe suave, quase invisível, que não deixava distinguirem-se bem os seus traços, os seus olhos distantes. Andava pelas salas de nossa casa em silencio, sentava-se em sua cadeira habitual sem que se ouvisse o ruído de seus passos, e, quando falava, era em um só tom, sem que nunca a impaciência a alterasse. A influência que exerceu sobre os caracteres inquietos e contraditórios de seus filhos foi intensa, invencível, mas serena, e se fazia sentir apenas por intuição, pela rede mágica que nos prendia na preocupação sufocante de não provocar uma nuvem de tristeza que perturbasse o seu olhar altivo e doce, que nos falava com irresistível eloquência. Parecia a nós todos que um gesto mais forte, uma palavra mais alta, de nossa parte, viria quebrar aquele encanto, e partir o cristal muito frágil que a mantinha entre nós, e vivíamos assustados, retidos pelo medo de agir, de sentir, de viver, de forma poderosa e plena, e assim despertá-la, e poderia então ouvir as batidas de nossos corações, agitados pela maldade do mundo. Sabíamos todos, contado em segredo pelas outras senhoras, o rápido e doloroso drama que a tinha despedaçado. Tendo casado em Paris, seguira para Itabira do Mato Dentro, e, depois de oito anos de felicidade, meu pai morrera subitamente. Desorientada, tentou refugiar-se junto de minha avó, que ficara em Honório Bicalho, onde estava a mineração de ouro de minha família materna, e, na estação, soube que ela falecera na véspera. Quis então ir para junto da irmã materna e sua madrinha, em São Paulo, mas esta também morreu, no mesmo mês... e assim se fechara sobre ela uma lousa inviolável de renúncia e de tristeza, que nunca podemos vencer, durante tantos anos de sobrevivência. Quando fecho os olhos ainda a vejo, a mesma de todo o tempo, e procuro em seu rosto ou em suas mãos um sinal de paz e de espera. Mas não o vejo, e me lamento porque não a fiz sofrer sem reservas, porque não a fiz chorar todas as lágrimas da maternidade infeliz, porque não despejei em seu coração todo o fel que prendi ferozmente no meu, porque não lhe pedi socorro aos gritos, não deixei que eles saíssem de minha boca, fechada com violência pelo medo e pela incompreensão... E é por isso que desejava guardar sua imagem muito pura, muito secreta, e tenho a impressão de traí-la, falando sobre ela! “
In Cornélio Penna, romances completos, editora José Aguilar, 1958. Pg XXVI.


Voltando ao início: é bom, é bonito e é justo aprender a manifestar o amor. 




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