Nello de Moura Rangel Neto
O quadro “A alegoria da calúnia” de Irmã Renault, uma reconstrução do quadro perdido do pintor grego Apeles, produz normalmente forte impacto em quem o olha pela primeira vez. De grandes dimensões e em cores intensas e saturadas[i], é pouco provável que passe desapercebido ou não cause estranhamento.
Contudo, quando começamos a decodificá-lo iniciamos um processo de aproximação que rompe as barreiras iniciais que porventura ocorreram. É fascinante entender os significados entrelaçados e talvez ainda mais fascinante poder pensar sobre temas tão negados e desconsiderados pela maioria de nós.
Fundamento a análise a seguir, especificamente no que diz respeito às cores, nos trabalhos realizados sobre o teste “As pirâmides coloridas de Pfister”, e nos pressupostos da disciplina “Teoria da Cor”, por mim ministrada ao longo de anos.
O teste das pirâmides coloridas de Max Pfister é uma técnica projetiva, onde a pessoa testada escolhe entre vários tons de diferentes cores e monta algumas pirâmides com estes tons. Esse exame psicológico permite uma avaliação de personalidade da pessoa testada, com base nas suas escolhas cromáticas e no modo como ela estrutura as formas das referidas pirâmides.
Teoria da cor é uma disciplina que estuda a cor e seus fundamentos psicológicos, físicos, fisiológicos e culturais. Ministrei essa disciplina em cursos de arte, publicidade e restauração de obras de arte.
Em um primeiro olhar a visão geral da obra de Irma Renault indica um mosaico de cores, a grande maioria delas muito intensas, tal qual um tapete muito colorido, mas paradoxalmente com poucos contrastes, uma vez que quase todos os tons são bem saturados, puros. Podemos dizer que as únicas exceções a esse padrão de saturação intensa são o tratamento dado às figuras da inocência e da hipocrisia, amarronzadas e escuras.
Esse tapete intenso e que grita quase todo no mesmo tom sugere o que se chama de labilidade afetiva, como se o quadro o tempo todo oscilasse entre as mais variadas emoções. Apesar de só possuir uma figura em movimento explícito – a calunia corre para a esquerda – o quadro todo como que se movimenta, ou ao menos leva os nossos olhos a se movimentarem entre as figuras, maneando entre os vários tons, intensamente e sem descanso.
Tentando classificar o quadro dentro dos critérios da história da arte podemos dizer que se trata de uma obra expressionista, e que oscila entre o Fauve e o Naif, com predominância deste último.
Expressionista porque privilegia a força da expressão à fidedignidade da representação. O expressionismo não procura retratar o que se vê objetivamente, mas sim as emoções e sentimentos subjetivos que a realidade suscita no artista. Os expressionistas tendem a se afastar de um superficialismo mais preocupado com a habilidade técnica, característico de uma arte demasiado refinada, e a se aproximar dos modos diretos e francos, em suas formas e cores.
E entre o Fauve e o Naif porque guarda características dos dois grupos.
Os Fauvistas utilizam cores vibrantes e tratam de maneira livre a forma de representação do mundo. Buscam ainda a redução da linguagem da pintura a seus meios de expressão mais essenciais, dando especial destaque a cor, a forma e a pincelada. O termo Fauve significa fera, e foi usado para se referir a intensidade que caracterizava os quadros desses pintores.
Já os Naifes se referem a uma pintura de natureza espontânea, a maior parte das vezes autodidata e desvinculada de escolas tradicionais da arte. Suas composições geralmente são básicas, detalhadas e de fácil compreensão. Esta forma de pintura se caracteriza pela simplicidade e constantemente é associada à ingenuidade. Etimologicamente, deriva do francês Naif, que tem o significado de originário, nativo; natural, espontâneo, sem artifício. Este por sua vez vem do latim natívus, que se refere ao que é natural, no sentido de formado pela natureza, não artificial, primitivo.
A influencia Naif é muito importante para a arte moderna. Quer seja pela tentativa de recuperação do valor mágico, sagrado e ritualístico que a arte possuía para os povos ditos primitivos, quer seja pelo anseio romântico de fugir de uma civilização corrompida e cruel, a presença Naif se faz sentir em quase toda a arte moderna e contemporânea. A influencia da arte Naif é considerada um tipo de retorno ao infantil, ao espontâneo e ao lhano, retorno este que marca toda a arte e o gosto a partir do inicio do século XX.
Logo após o início desse século, particularmente após a primeira exposição dos Fauves, em 1905, inicia-se segundo alguns autores uma verdadeira revolução no gosto, por influencia de uma estética Naif. Os pintores começam então a se interessar por redescobrir a beleza das obras do início da idade média, a estudar as obras dos indígenas, a descobrir a obra de Henri Rousseau, e a valorizar assim a estética que traz em seu núcleo a simplicidade, o vigor e a poesia.
Esse enfoque reminiscente e de certa forma pueril é encontrado claramente em muitos artistas posteriores, particularmente em Chagall. Trata-se de um gosto pelo que é direto e genuíno, sem afetações ou artifícios, gosto esse que pode facilmente cair em contradição ao se esforçar para se tornar deliberadamente ingênuo ou primitivo.
Mas como sugerir um componente Naif neste quadro de Irmã Renault, um quadro tão pesado e que trata de temas tão próximos da violência e da atrocidade? Parece contraditório, mas observando bem a pintura veremos que é adequado. Como indícios Naifes vemos as cores intensas e saturadas, as formas definidas com clareza, a perspectiva simples e despreocupada, a abordagem pouco realista dos personagens. Mas, sobretudo um clima com alguma ingenuidade, uma simplicidade que parece ser a única forma assimilável de se tratar de temas tão pesados.
No passado foram várias as representações da calúnia que tentavam reproduzir ou recriar a pintura original que se perdeu, de Apeles. Em todas havia uma estilização formal da obra, de acordo com seu tempo, que acabava por atenuar o peso da temática. E de certa maneira também diluía a força e importância do assunto.
Há na abordagem Naif de Irma uma forma alternativa de adentrar o tema de modo espontâneo, cru e forte, desprovido das formalidades atenuantes de outras obras. O quadro grita aos nossos olhos, mas não ensurdece. Um sutil equilíbrio permite que vejamos todo seu universo sem ficarmos ofuscados pelo terror.
Talvez o conceito mais apropriado para compreender esse fenômeno, que permite entender a arte naif como densa e não como infantil e diluída, seja a palavra lhaneza, que é a qualidade do que é lhano e afável. Indica candura, singeleza. Vem do espanhol, e junta em si os fundamentos da franqueza e da simplicidade. Lhano é aquele que é movido pela franqueza, que é franco, sincero e verdadeiro. E o é de maneira simples, natural, singela, amável e despretensiosa.
Os dois conceitos – naif e lhano - se opõem tanto ao afetado e ao fingido e rebuscado, como também ao tosco, ao presunçoso, ao ardiloso e ao soberbo.
Lhaneza seria a ponte entre a simplicidade e a verdade, entre a sinceridade e a delicadeza. Aquilo que é lhano consegue tudo dizer, com força e franqueza, sem afetação, fingimento, ardil, presunção ou rebuscamento.
Penso que o conceito de lhaneza é essencial para se compreender o naif. Retoma esse conceito a densidade que caracteriza esse movimento, impedindo que ele seja dissolvido como se fosse algo infantilóide ou simplório. E explica como Irmã Renault pode neste quadro dizer tudo sem entorpecer ou ofuscar quem o vê.
Olhando para o quadro nos chama a atenção dois seres que tem a cor laranja em sua composição. O primeiro deles é a calúnia.
Tema central do quadro a calúnia é quase que totalmente de um laranja intenso, com detalhes em vermelho. É ainda a única figura do quadro que corre e tem um olhar que mira algo ao lado da tela, como uma meta ou objetivo, mas pelo seu tom um objetivo de violência e de domínio. Só a calunia tem um sorriso claramente sarcástico. Com uma mão ela finca o pé da inocência e com a outra ela queima o pé da inveja. A Tocha que pretenderia iluminar a realidade com a pretensa verdade que a calunia expõe está voltada para trás, não ilumina o adiante.
Sua figura se destaca no centro do quadro, de modo único quando comparada às demais. E divide o tratamento dado ao fundo do quadro em duas metades, uma adiante de si, na qual predominam os tons frios, azuis, violetas e verdes e outra atrás, nessa predominando os tons quentes, particularmente o amarelo e o laranja.
A inocência tem o rosto no mesmo tom de laranja que predomina na calúnia. Também é a única que tem dentes igualmente agressivos. Os dentes da má fé aparecem por que ela sorri. Os dentes da credulidade aparecem porque ela tem a boca frouxa e hipotônica dos imbecis. Já os dentes da calunia são os únicos pontiagudos, perfuradores. Os dentes da inocência, apesar de não pontiagudos como os da calunia, são os únicos que mordem, no caso, mordem a hipocrisia.
A inocência é a única que rivaliza em destaque com a calunia nesta obra. Se a cor e a posição central desta chamam nosso olhar com irresistível força, o tratamento “peludo” e de tonalidade escura daquela possuem semelhante capacidade de atração. O tratamento e a textura dada a grande parte de seu contorno parece sugerir uma pelagem marrom que envolve seu corpo, como que querendo isola-lo de tudo a sua volta, numa atitude de fechamento e impermeabilização, como se possuísse uma fraqueza interna que devesse ser defendia a todo custo.
A inocência é a única com chifres, um símbolo do poder e do demoníaco. É também a única com uma coroa. A coroa e o corno se elevam acima da cabeça e indicam poder, separação do que seja próximo do humano e superioridade. E, de fato, fazer-se de inocente é uma forma evidente de poder e de manipulação. A figura da inocência é ainda a única com uma língua aguda e viperina, em forma de foice, capaz de ferir.
A inocência está localizada no canto mais escuro do quadro, como a sugerir que tentar considerar possível sua participação no círculo diabólico da calúnia é assunto obscuro e nebuloso. A maior parte das pessoas não compreende que a inocência possa participar da calúnia. Só a vêm como sinal de pureza ou da condição de vítima. A inocência tem o pé espetado pela lança da calúnia, o que parece indicar que o objetivo da calúnia é atingir a inocência. Outra leitura, porém, é possível. A lança da calúnia tem claramente a forma de uma seta. A artista poderia desta forma sugerir que a inocência é uma figura das mais importantes da calúnia, daquelas que mais contribuem para manter o círculo diabólico da calunia a girar. A força da inocência encontra seu principal pilar no fato de ser dissimulada, ambígua, disfarçando-se em sua aparência de inocente. Não por acaso seus vizinhos mais próximos são igualmente escorregadios e imprecisos: o sarcasmo, a hipocrisia e a má-fé. Este quadrante que começa com a má fé, passa pela hipocrisia e pela inocência e termina com o sarcasmo é o quadrante da obscuridade e do falseamento.
Irma Renault pintou este quadro 18 anos após pintar sua primeira versão da calúnia de Apeles. Ao longo dos anos, à medida em que ia compreendendo as nuanças fundamentais de cada uma das 14 figuras participantes, realizava novas pinturas sobre o mesmo tema. É relevante observar que a última figura a ser melhor compreendida pela artista, justamente por seu caráter ambíguo, foi a figura da inocência. Somente nesta versão final a artista muda sua aparência de vítima e a revela como participante ativa do círculo diabólico da calúnia. A revelação das verdadeiras características da inocência na dinâmica da calunia é uma das principais inovações de Irma Renault quando comparamos seu quadro com tantos outros conhecidos, de outros artistas, sobre o mesmo tema.
Nós não temos o direito de sermos inocentes. Não temos o direito de negar a busca pelo poder que nos impregna, que impregna aos outros e que impregna as relações. Se negarmos a parte que nos cabe na luta pelo poder acabaremos decepcionados quando confrontados com essa face da vida, seja quando esta aparece em pessoas do nosso afeto que considerávamos desprovidas do mal, seja quando aparece em nós mesmos. E atolados dicotomicamente na decepção, acreditaremos que o bem e o amor não existem, que quem quer que se julgue bom na verdade é bobo, e que só nos resta sermos mais espertos que os espertos.
Esperando a recompensa por nossa bondade – esse seria nosso poder tão negado? – acabamos por negar os valores que tanto professamos. Ao negar o poder presente em cada qual acabamos por negar a bondade, não podemos mais sermos bons, pois a nossa pretensa bondade é nossa fonte própria de poder.
A única perspectiva nesse contexto, de amar e ser amado, de ser verdadeiramente bom, é começar por identificar cada lasca de poder que jaz dentro de nós, desde as mais inconfessáveis até as que julgamos plenamente justificáveis. Assim o poder pode adquirir seu real tamanho. Nem inexistente nem monstruoso.
Porque a inocência foi a ultima figura a ser devidamente elaborada no quadro da calunia? Porque é aqui que o poder se esconde. E se mantém.
A hipocrisia faz companhia à inocência, sendo as duas as únicas figuras que têm a cor marrom escuro, que destoa de todo o resto do quadro. Esse é o tom da obstinação, do conservadorismo e do fanatismo. A hipocrisia é a figura mais escura de toda a alegoria. Seu tom marrom envolve seu corpo por inteiro, o que a difere da inocência, que tem marrom unicamente em seu contorno. É a única de cabeça pra baixo, em posição morcegal. A hipocrisia está espremida entre a má fé e a inocência. Apóia um pé no ouvido da má fé e uma mão na língua viperina da inocência. A hipocrisia obstrui o único buraco de azul no céu que poderia iluminar este lado sombrio da obra. Somente ela e a verdade por ouvir dizer apresentam a boca em arco invertido, que representa tristeza. Há uma diferença estranha entre seus olhos, um deles arredondado, o outro triangular. Citaremos abaixo outros olhares divididos, um presente na figura do sarcasmo, e outro na máscara da má fé, e tentaremos associar esses olhares.
Quase sumindo, meio que querendo sair do quadro, está o sarcasmo, com sua forma espiralada, insinuando em sua metade inferior uma víbora. Seu corpo é dos mais inumanos quando comparado aos corpos das outras figuras. Seu tom quase se confunde com o fundo do quadro, mas mesmo assim o seu azul, de tom mediano como o azul da figura da verdade por ouvir dizer, é essencial na composição da obra. As duas figuras equilibram os extremos do quadro. Seu tom de azul é o tom do convencionalismo, da formalidade e da falta de autenticidade. O sarcasmo, que em si se caracteriza por um riso amargo, cáustico, que com a boca dilacera, neste quadro tem um sorriso quase maroto. Sua única mão, de seis dedos, parece querer alcançar algo acima. Mas seu olhar não acompanha seu gesto, pois um olho olha pra cima e o outro olha para baixo, num estranho estrabismo. É, pois, de uma ambigüidade múltipla, dividido entre gente e serpente, dividido entre gesto e olhar, dividido no próprio olhar, entre olhar acima e olhar abaixo, e por fim sutilmente dividido em cores, com o azul por fora e o verde por dentro.
Sendo tocada pela mão cinza da inocência está a má fé. Apresenta um corpo amarelo e tenta ocultar seu rabo peludo de escorpião na parte obscura do quadro. Seus pés têm a forma de garras, tal qual uma ave de rapina. Segura em uma mão um buquê de cor laranja-vermelho, meio flores, meio corações sanguinolentos. Na outra mão uma máscara, de cor azul, tal qual a cor da verdade por ouvir dizer.
A má fé sorri de olhos fechados, mas a máscara que segura em uma mão está de olhos abertos. É como se a má fé dissesse que ela mesma não vê o que faz? Ou ela fecha os olhos, propositadamente, e só olha através de sua máscara? O olhar dessa máscara é o terceiro olhar dividido do quadro e, curiosamente, une o olhar da hipocrisia (é redondo e triangular) com o olhar do sarcasmo (olha ao mesmo tempo para cima e para baixo). É a figura da aparência de adequação, mostra flores e máscaras, e tem seu corpo na cor amarela, que se caracteriza pela ação orientada para a aceitação dos outros, para o convencional, mesma cor do interior da inocência.
Em várias partes da figura da má fé vemos pinceladas cinzas. Elas circulam seu rosto, estão na sombra de seus olhos e no contorno de seus seios. Uma mancha cinza escuro preenche o espaço entre seu braço direito e o abdômen, e como que amputa uma parte de sua barriga. Outra mancha, de cinza médio, preenche o espaço abaixo de si.
É sugestivo encontrar a inocência cercada por três olhares ambíguos, estranhos, e divididos, presentes nas figuras do sarcasmo, da hipocrisia e da má fé. Eles indicariam os vários artifícios que a inocência usa para dissimular-se? Ou talvez a aparência escorregadia e ardilosa que a inocência usar para manipular? O próprio olhar da inocência é único no quadro. Assemelha-se ao da credulidade, por também olhar para cima. Mas diferencia-se dessa por trata-se de um único olho, e nisso assemelha-se ao olhar de peixe morto, ao mesmo tempo enfermo e desvitalizado, ao mesmo tempo sedutor e manipulador.
A verdade por ouvir dizer, convencionalmente azul, parece observar algo, justamente no espaço de onde a calunia deveria ter saído. A verdade por ouvir dizer só enxerga os rastros da calunia, somente a área que a tocha da calunia ilumina. Assim como a hipocrisia, sua boca invertida expressa tristeza.
Mas mesmo vendo somente os rastros da calunia como poderia a verdade por ouvir dizer ver de fato alguma coisa? A sua tocha não ilumina adiante, não ilumina onde ela deveria ver. Sua tocha ilumina pra trás.
Ocultando-se atrás da verdade por ouvir dizer está a maledicência, a figura mais escondida da pintura. O fato de tentar ocultar-se atrás de outra figura parece sugerir que a maledicência só pode funcionar se não for explicita. Não se pode falar mal do outro abertamente, se se pretende alcançar algum efeito. E o ideal é se esconder atrás de uma aparência de verdade.
Allport definiu uma graduação dos níveis de preconceito. O primeiro nível é falar mal. Em seguida vem, em ordem crescente de preconceito o evitar contato, a discriminação, o ataque físico e por fim o extermínio.
Falar mal é visto pela maioria das pessoas como algo sem importância. As piadas sobre negros, louras, portugueses, e etc, estão aí para demonstrar a banalidade do falar mal. Contudo, justamente em sua aparente desimportância, se revela o perigo. Ao desconsiderar a violência presente no falar mal perde-se a oportunidade de interromper o processo discriminativo de exclusão do preconceito, que culmina, como demonstrado na escala, na eliminação física. A artista foi muito feliz ao colocar a figura da maledicência tão escondida no quadro. Sua força está em não se mostrar em todo seu ódio, está em sua capacidade de despiste, em sua banalidade.
O corpo violeta claro da maledicência rasteja pelo chão. Esverdeado é seu rosto, de um verde semelhante ao verde da inveja. Será a maledicência sempre movida pelo invejar? Laranja-vermelho intenso é sua língua, a lamber o chão. Mas não aparenta estar insatisfeita por isso, nem com o fato de ser a figura mais a se arrastar no chão do quadro, uma vez que sorri. Parece verdadeiramente interessada no chão que lambe. Há aqui semelhanças entre a maledicência e Anteu, gigante da mitologia greco-latina. Um dos adversários de Hércules, Anteu tira forças da terra, e fica mais forte a cada vez que cai, arremessado ao solo.
A maledicência é a única figura do quadro com o olhar negro.
A língua que se destaca na figura da maledicência somente encontra o mesmo destaque na figura da inocência. É significativa esta similaridade. A maledicência realiza-se através de sua língua, ao falar mal. A inocência participa do círculo da calúnia de várias formas. Em uma delas seu principal ardil é fazer-se de inocente, fingindo desconhecer a calunia que acontece, se omitindo de revelá-la e assim interromper sua propagação. Uma outra forma, na qual o uso da língua pela inocência é evidente, acontece quando o inocente passa adiante a calunia, com a justificativa de que não foi ele quem a disse pela primeira vez, pois ele está somente repetindo algo que ouviu. Pretende dessa forma isentar-se de qualquer responsabilidade sobre a calunia, que ajuda a propagar quando a passa adiante com sua língua viperina.
O artifício paira no ar, único ser alado. O artifício, enquanto olha para a calúnia, tenta colocar a mão sobre a cabeça da verdade por ouvir dizer. Olha de esguelha, levantando uma sobrancelha, como que a tentar ver se alguém percebe o que pretende fazer. É meio rosa, cor adequada para aparentar inocência, mas seu rosto trás ambíguos e dissimulados tons de cinza (ou seriam tons de cinza azulado?). Em suas asas cinco olhos azuis nos olham, a tentar metamorfosear essas asas em um rabo de pavão.
Assim, neste canto da obra a verdade por ouvir dizer, que ilumina só para trás, olha adiante o espaço que só recebe a luz da calúnia. Por trás da verdade por ouvir dizer a maledicência, sorridente, usa de sua língua destrutiva. Acima da verdade por ouvir dizer, o artifício põe a mão sobre sua cabeça.
“Escuta, meu filho, disse o demônio colocando sua mão sobre minha cabeça...”
Edgar Allan Poe
De um azul mais clarinho, mais infantil, está a culpa, de joelhos, de olhos fechados como a má fé, carregando uma pedra cinza escura, mesma cor das mãos da inocência. Cheia de dedos, seis em cada mão, a pedra não parece fustiga-la, uma vez que sua expressão parece tranqüila. A culpa, de olhos fechados, não vê e não parece se incomodar com isso.
Quase que Inteiramente cinza, de um cinza ao mesmo tempo escuro e azulado é o remorso. Seu rosto tem traços pouco definidos, meio transparentes, ambíguos. Mas mesmo assim percebe-se que não está triste. Sua atitude corporal é de afetação e sedução. Apóia a cabeça na sua mão esquerda, parecendo até sorrir para quem olha o quadro. Sua cor é muito apropriada, cor escorregadia, nem sim nem não, nem preto, nem branco, indicativa de que não haveria um verdadeiro arrependimento.
Esta dupla do quadro, a culpa e o arrependimento, sentimentos tão pesados e tristes, parece estranhamente feliz. A artista parece sugerir que o arrependimento não é real, e que a culpa aqui não pesa.
Esse retrato inesperado da culpa, essa estranha leveza em um sentimento considerado habitualmente absolutamente pesado, é muito apropriado em face a uma analise mais aprofundada do sentimento culposo.
Ao vermos uma criança chorando, sentindo-se culpada por algo que fez e pelo qual foi repreendida, supomos estar frente a um verdadeiro arrependimento e imaginamos assim que o comportamento criticado dificilmente acontecerá novamente. Ledo engano. Pode até acontecer um retraimento na criança daquele tipo de ação que foi repreendido. Mas, se o foco da reprimenda foi a produção de culpa e não a compreensão do erro cometido – este é o padrão mais comum em nossa cultura – a criança em questão não saberá verdadeiramente no que suas atitudes estavam inadequadas, e, quando atenuado o temor diante da reprimenda original, muito provavelmente voltará às suas atitudes anteriores.
A culpa não se presta para a promoção da mudança. Mudamos se compreendemos o fundamento do nosso erro. A culpa não nos aproxima desta compreensão, pelo contrário, nos afasta dela. A pessoa que se sente culpada, ao sofrer diante do acontecido expia com seu suposto arrependimento seus incômodos sentimentos. E assim se afasta da compreensão de seu erro.
Mesmo porque diante da culpa não se erra, peca-se. E não se erra diante do outro, peca-se contra Deus.
Se compreendêssemos os fundamentos de nossos erros poderíamos voltar atrás e escolher outro caminho. Se não estamos mais na direção equivocada estamos desobrigados por que mudamos, não respondemos mais pelo que caducou.
A culpa só presta para incutir temor e assim possibilitar que a manipulação possa ocorrer mais facilmente.
No canto oposto da pintura a desconfiança rosa olha de soslaio. Ela é a única figura do quadro com o braço mais flexionado, em atitude de defesa, como se se sentisse ameaçada, como se suspeitasse de alguma coisa. A desconfiança também é a única que verdadeiramente não tem pés. Somente uma parte de uma coxa se insinua. Algumas figuras da pintura têm seus pés ou pernas tampados por outra figura ou por alguma parte do próprio corpo. O sarcasmo não tem pés ou pernas pelo fato de ter corpo de cobra. Já na desconfiança a artista poderia ter pintado ao menos um pé no espaço entre o rosto e o braço da ignorância, mas não o fez. Parece indicar que carece à desconfiança base ou fundamento naquilo que desconfia.
A desconfiança se esconde atrás da ignorância. De um verde mais claro que o verde da inveja, a ignorância está com suas enormes orelhas de burro e em irônica posição semelhante à famosa estátua “o pensador”. Em posição de reflexão como se encontra, a ignorância parece indicar que é ignorante não por que não pensa, mas talvez porque não pergunta, uma vez que sua boca está somente insinuada e parece fechada. Outro sentido possível para sua pose de pensador é que a ignorância ignora que ignora. Ela acha que sabe. Neste contexto, a ignorância não sabe que não sabe, e assim nem vê sentido em perguntar algo.
A inveja também é verde, mas de um verde acinzentado e escuro. Cobras atacam seu coração marrom, como dito antes, tom do conservadorismo, do fanatismo e da obstinação. A inveja parece ter um chocalho (ou seria uma coroa?) na mão. Essencialmente dividida, a inveja vai para um lado e olha para o outro. E é a única com a boca arregalada, que poderia ser de pânico, mas o restante da expressão de seu rosto e de seu corpo não parece indicar isto. Resta então a essa boca arregalada ser uma boca famulenta, insaciável. No quadro somente a inocência e a inveja possuem “unhas-garras”.
Virada para a esquerda a inveja parece sugerir que vai adiante, mas a posição de suas pernas é ambígua. Pode indicar movimento para frente, recuo para trás, ou mesmo que está parada apoiada sobre seu pé direito. A sensação é de que na verdade a inveja está imobilizada, olhando para trás, numa espécie de saudade. Seus olhos são vermelhos, assim como os olhos da máscara da má fé e do sarcasmo.
O olhar tem particular importância no caso da inveja. Podemos ter inveja de coisas tangíveis, do dinheiro alheio, da beleza física ou da juventude de outras pessoas. Mas a inveja mais dura, mais visceral, é a inveja do brilho no olhar, a inveja da sensação que o outro pode produzir em nós de que ele é verdadeiramente feliz. Dinheiro ou beleza física podemos tentar conquistar. Mas como conseguir a graça e a felicidade quando nem mesmo acreditamos que elas existem? Como tomar do outro o brilho do seu olhar, a sua vitalidade? Se estivermos de fato vitalizados nem mesmo o olhar mais invejoso é capaz de tirar de nós a graça. A inveja acaba por ser uma forma de desesperança, uma crença de que estamos condenados à infelicidade e que a graça e a vitalidade são ilusões pueris.
A roxa credulidade olha para cima, em direção à inocência E ajuda a calunia, juntando sua mão à dela, a espetar o pé da inocência.
A credulidade tem grandes orelhas, tudo ouve e acredita. Tem a boca flácida e hipotônica dos tolos. A credulidade é a única que tem uma cor interna diferente da cor externa. Parece dividida, como a inveja. Mas, se a inveja está dividida entre duas direções, entre ir para um lado ou para o outro, a credulidade está dividida entre o que carrega dentro de si e o que mostra do lado de fora.
O quadro todo se movimenta e se interliga, seja pela estrutura de sua composição, seja pelo intenso jogo entre as cores, que remetem nosso olhar por todo o campo pictórico.
A figura central da calunia, tendo acima de si a má fé, a inveja e o artifício, se afasta da verdade por ouvir dizer. Com sua lança ela fere a inocência, apoiada pela credulidade, que em tudo acredita, pois é ladeada pela desconfiança e pela ignorância, que a impedem de perguntar e assim revelar a realidade.
Na versão pintada por Botticelli sobra a calúnia de Apeles, assim como também em outras versões antigas, há um rei/juiz a receber a denuncia da dupla calúnia/inveja. Essa é a figura a ser convencida da “verdade” das denuncias da calúnia. No quadro de Irma Renault a figura do juiz parece ser substituída pela credulidade. Isso é insinuado pela orientação da figura da calunia, que se dirige à figura da credulidade Nas obras antigas a credulidade é orientada pela ignorância e pela desconfiança a acreditar na calunia. No quadro de irma isso é só levemente insinuado pela posição próxima das três figuras.
A inocência se apóia em seus vizinhos contorcionistas, o sarcasmo e a hipocrisia, na tentativa de apresentar-se imaculada e pura. Tenta alcançar a má fé com a mão, pois deste modo sua fraude se completaria.
A inveja caminha sobre o artifício e olha para trás, em direção a uma dupla de expressão paradoxalmente feliz, o remorso e a culpa.
A verdade por ouvir dizer não ilumina para si, tudo que vê reflete a luz da calunia. Atrás da verdade por ouvir dizer uma feliz maledicência rasteja. Por cima o artifício bota a mão em sua cabeça.
A presença da cor cinza é fundamental na dinâmica do quadro. Só se percebe a presença de tons de cinza na metade superior desta obra.
No canto inferior esquerdo as figuras da suspeita, da ignorância e da credulidade formam um grupo bem definido. No lado oposto o mesmo acontece com o grupo formado pelo artifício, pela verdade por se ouvir dizer e pela maledicência. Ligando um grupo ao outro, numa dinâmica perfeita, encontramos a figura da calúnia.
Essa mesma dinâmica não é encontrada na parte superior do quadro, onde as figuras estão mais desconectadas entre si. A cor cinza é o elemento que não permite que essa desconexão comprometa a dinâmica o quadro como um todo.
O movimento do cinza se inicia nas mãos da figura da inocência. Esta toca a má fé que se acinzenta em várias partes de seu corpo, chegando a contaminar de cinza o fundo da obra.
No centro do quadro, entre as pernas da má fé, acima de um dos pés da inocência e acima da testa da calúnia está a única parte do quadro preenchida por uma cor chamada tecnicamente de cinza médio. Neste cinza que preenche essa parte do fundo da obra não há misturado nenhum tom de outra cor. Este cinza não é claro nem escuro, é neutro. É o único tom que só existe em um ponto do quadro e foi posto justamente no centro, assumindo função essencial na composição do quadro como um todo.
O cinza continua seu trajeto pela figura que surge ao lado da má fé, a inveja, em seu verde acinzentado. E adiante encontra o azul acinzentado do arrependimento que, por fim, acinzenta a pedra carregada pela culpa.
Assim encontramos na metade superior da obra o percurso insaturador, atenuador e igualizador do cinza, unindo dinamicamente as figuras desse quadrante e impedindo a sua fragmentação.
Esse quadrante superior unido pelo cinza é o trecho de mais difícil identificação por parte de quem vê o quadro. Suas figuras são as mais negadas sendo difícil para as pessoas encontrar em si qualquer semelhança com elas. Não por acaso o cinza é cor ligada a ambigüidades e indefinições, a renegações, a omissões e racionalizações justificadoras.
Comparando o quadro de Irma Renault com outra versão da Calúnia de Apelles, pintada por Botticelli, podemos perceber algumas diferenças importantes.
Chama logo nossa atenção o fato de que a versão de Botticelli é bem mais leve que a versão de Irma Renault. Predomina naquela tons insaturados e mais claros, ao passo de que nesta predominam tons saturados e gritantes. A isso se soma o fato de que na versão de Botticelli algumas das figuras são retratadas de forma leve e positiva. Essas figuras podem ser divididas em dois grupos: as que com a aparente leveza dissimulam suas funções violentas e manipulativas (essas seriam a ignorância, a calúnia, a insídia e a fraude) e as que realmente se apresentam como leves, como não atuantes na calunia e em sua dissimulação (que por sua vez seriam a inocência e verdade).
O primeiro grupo, das figuras que são retratadas de maneira mais leve mas que participam ativamente da calunia, indica uma sutiliza interessante nessa pintura. Para que a calunia possa realmente se realizar em sua plenitude ela tem que ser, ao menos parcialmente, dissimulada. Suas figuras não podem berrar suas intenções. Elas tem que aparentar confiabilidade e até serem belas, como algumas citadas acima. Neste sentido, o quadro de Botticelli é mais sutil do que o de Irma Renault.
O segundo grupo, composto pela inocência e pela verdade, é o grupo das figuras que não seriam ativas no fazer ocorrer a calúnia. A inocência seria a sua vítima sacrificial, e a verdade seria a vítima omitida, que não pode ser revelada. No quadro de Irma Renault as duas são radicalmente transformadas. A verdade se torna a verdade por ouvir dizer. E a inocência se torna um monstro diabólico. A pintora parece ter ficado muito impressionada quando percebeu que era possível violência por trás da inocência, e que desse modo a inocência não seria verdadeiramente inocente, mas só se faria passar por tal. Apesar de ser verdade que, por trás de uma aparente inocência, pode haver até mesmo o núcleo da violência, isso não nos permite supor que não exista mais a possibilidade de alguma inocência, ou seja, de existir alguém que não participe da calúnia. Também não faz sentido supor que toda verdade é somente verdade por ouvir dizer, é somente uma ilusória verdade. Existe aquele que não participa da calúnia e que neste sentido é inocente. Existe a possibilidade de se sair da calúnia e se aproximar da verdade.
Assim, nem tudo é calúnia, nem tudo é mal, nem tudo é feio e injusto. Irma Renault parece ter se assustado com o que percebeu e feito uma alegoria de um mundo onde não resta uma fresta de ar fresco, um resquício de bondade.
No interior se diz que, quando banhamos uma criança na bacia, ao lançarmos a água suja fora, pela janela, não podemos nos esquecer de tirar a criança antes. Nem tudo é calúnia, nem tudo é violência, nem tudo é desamor. Há de se ver o que de feio há em cada um de nós, mas sem com isso negar o que temos de verdadeiro e belo. Ou, dito de outra forma, queimemos as formas caducas de nossa existência, e preservemos o que é bom, belo e justo. Nem tudo deve ser jogado ao mar.
Por fim, tentamos nesse trabalho uma leitura de um quadro tão complexo e rico, que trata de temas tão humanos, mas tão negados por todos nós.
Justamente por isso neste texto a palavra estranhamento não foi usada à toa. Sua etimologia é muito precisa: remete ao estrangeiro, àquele que é de fora, que não pertence à família. Logo no início do artigo usei pela primeira vez essa palavra, ao me referir à atitude primeira de muitas pessoas quando diante do quadro. Considero que essa atitude revela a dificuldade que temos com aquilo que em nós consideramos como feio, errado ou mau, e que o quadro parece de alguma forma nos querer lembrar.
Certos quadros parecem ter essa propensão de causar estranhamento em quem os vê. Talvez, por isso mesmo, esses quadros tragam em si a possibilidade de modificar algo em nós, modificar algumas formas muito taxativas que temos de olhar para nós mesmos (e conseqüentemente para os outros à nossa volta), ou até permitir uma reconfiguração um pouco mais abrangente dentro de cada um, uma verdadeira ressimbolização do modo de se ver e do modo de ver a realidade na qual vivemos. O quadro “A Calúnia”, de Irma Renault, trás em si essa potencialidade e por isso merece ser considerado com cuidado.
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Toda cor é classificada segundo três parâmetros: matiz, valor e saturação.
Matiz é a cor individualizada, é o nome que
recebe cada cor do círculo cromático: vermelho, amarelo, azul, etc.
Valor é o grau de luminosidade da cor. O
violeta é mais escuro (ou seja, tem menor valor) que o amarelo, por exemplo.
Saturação é grau de pureza da cor. Toda cor
se insatura ao ser misturada ao branco, ao preto ou ao cinza. No caso do branco
e do preto a cor sofre também um acréscimo ou decréscimo, respectivamente, de
sua luminosidade, ou seja, de seu valor.
No caso de se misturar uma cor ao cinza (no
caso, um cinza médio, nem claro, nem escuro) a cor não modifica sua
luminosidade, somente diminui a sua saturação, o seu grau de pureza ou
intensidade. Se continuarmos a acrescentar cinza na mistura a cor perde a sua
própria identidade original, até todos os diferentes matizes se igualarem no
cinza.
Um comentário:
Excelente analise! Exatamente isto observa-se muito nas empresas. Quanta genialidade para conseguir resumir toda essa complexidade numa imagem só. Saudações desde Argentina.
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