quarta-feira, 24 de junho de 2015

A fresta



A briga começou de novo. Quando isso acontece é quase impossível parar. É sempre assim. Por qualquer coisa - na maior parte das vezes por um entendimento equivocado de algo que foi dito - as ofensas e grosserias se iniciam e contê-las é tarefa quase impossível. Sabe-se o final:  a exaustão  vence Eduarda, que se entristece terrivelmente. E  João permanece irritadíssimo e seguro de que tem razão, ainda por dias ou  semanas, nas quais o casal mal trocará palavra. Isso se não voltar a brigar de novo.



Brincadeira, né? Achar que ter ou não ter razão presta pra alguma coisa. René Descartes resolveu esse imbróglio já a uns 500 atrás, mas parece que ninguém contou pra gente. Inicia seu “Discurso Sobre o Método”, um dos livros mais importantes da história da filosofia, com o parágrafo: 

"O bom senso (ou a razão, preferem alguns...) é a coisa do mundo melhor partilhada, pois cada qual pensa estar tão bem provido dele, que mesmo os que são mais difíceis de contentar em qualquer outra coisa não costumam desejar tê-lo mais do que o têm.”

É um bom texto para se iniciar uma psicoterapia de casal. Casal que procura tratamento normalmente já chega brigando. Um acusa o outro com uma facilidade impressionante. Quando a coisa parece fora de controle, leio o parágrafo acima. E digo que, isso posto, todos os presentes à entrevista podem considerar que têm razão a priori. O marido, a esposa, o namorado, a namorada, e até o terapeuta presente na sessão, têm razão. E que isso não será discutido na terapia. Pois nunca se viu ninguém rezar para deus tirar seu excesso de razão:

- Oh, senhor, tira um pouco da minha razão, sempre sou eu que a tenho...

A partir desse ponto, sugiro que cada qual pense em três características próprias que gostaria de mudar para facilitar o relacionamento. E não nos problemas que o outro tem, porque ver no outro o que ele tem de errado é fácil. O complicado é cada qual ver a parte que lhe cabe. Ou, como diria Guimarães Rosa:

"Se o tolo admite, seja nem que um instante, que é nele mesmo que está o que não o deixa entender, já começou a melhorar em argúcia."

Brigar para ter razão é brigar pelo trono vazio das pretensões.  Sentar nesse trono não leva a lugar algum. O máximo que conseguimos é colher um deserto.



A esposa estava bem alterada. Quase gritando elencava muitos motivos para sua raiva, desespero e frustração. Alguns desses bem que se adequavam aos problemas que o casal precisaria resolver. Mas o tom alto com o qual falava e, principalmente, a dureza dos argumentos que usava, faziam com que o marido emudecesse. Sentia que nada do que dissesse resolveria alguma coisa. Pelo contrário, pioraria. Sentia raiva, muita. Sentia também dor e tristeza. Pensava em como se separar com meninos tão pequenos, se desesperava ao pensar no sofrimento deles. Mas, para piorar, sabia que eles já deviam estar sofrendo com esse clima malsão em casa. E foi assim, quando o marido já alcançara o auge da desesperança, que a esposa colocou certa frase no meio de tantos impropérios:

- Fulano, eu gosto muito de você, mas...

E continuo falando no mesmo tom e com o mesmo tipo de argumento que vinha usando antes. Mas algo já acontecera. O marido estancara naquela frase.

-Mas, ela ainda gosta de mim?

Agora ele conseguia escutar alguma coisa e entender, ao menos em parte, a solidão da esposa em seu desespero.



A ciência da convivência é sutil e cheia de reentrâncias.

Os objetos coexistem. Os animais, pelo menos em sua esmagadora maioria, coexistem. Seres humanos convivem. Mais do que isto: seres humanos precisam conviver para se tornarem humanos. E conviver é diferente de coexistir. Em primeiro lugar na convivência - quando ela de fato é convivência - as pessoas envolvidas interferem, verdadeiramente, uma na outra. Modificam-se mutuamente. Após o encontro não são mais as mesmas. Em segundo lugar, na convivência não é preciso que as pessoas envolvidas concordem uma com a outra. Conviver é enxergar tudo, as concordâncias e as discordâncias, as semelhanças e as diferenças, as aproximações e os distanciamentos. É não buscar a homogeneidade nem a unanimidade. E não ter pressa diante do encontro. 

O marido acima já estava trancando com sete chaves a porta da convivência quando escutou "Eu gosto muito de você, mas...”. E foi suficiente para que ele destrancasse a porta e a deixasse aberta. Foi como se a esposa tivesse colocado o pé na porta que estava se fechando, permitindo assim alguma abertura, alguma brisa passando por essa fresta.

Já foi dito pelo filósofo Julian Marias que não se pode ser verdadeiramente inteligente sem alguma dose de bondade. E esse autor parece associar bondade a saber esperar, não fechar o sentido das coisas tão rapidamente, afeiçoar-se à realidade deixando, por isso mesmo, que ela se manifeste por inteiro e de distintos pontos de vista antes de tentar classificá-la em algum sentindo único. E que, para que isso aconteça, não podemos ter pressa. Assim, sem alguma bondade dá até para se ser rápido, mas não verdadeiramente inteligente. 

Dessa forma teríamos de optar, a cada dia, se seremos mais abertos ou mais fechados, diante da vida. Quando mais fechados ficamos mais defensivos, vivemos como se a realidade fosse algo intrinsecamente ameaçador. Assumimos então uma posição beligerante, de conflito e desconfiança frente ao mundo. E ficamos mais miseráveis, pois desprovidos da riqueza que a diversidade que a vida pode nos oferecer. 

Podemos porém optar pela abertura diante da vida. Conseguiríamos assim mais flexibilidade. E ficaríamos mais ricos, receptivos que estaríamos à diversidade das pessoas e do mundo. Aprenderíamos mais sendo receptivos à realidade e à experiência das outras pessoas. Um bom indício que estaríamos com maior abertura é a nossa postura diante erro, do engano ou da percepção de que algo nos havia escapado. Quando abertos à vida sentimos gratidão diante da percepção de que estávamos equivocados. Sentimos alegria quando admitimos que havíamos nos enganado. Gratidão e alegria justo porque agora nos aproximamos da realidade, podemos lidar com ela com mais clareza, podemos vê-la melhor.


As brigas entre Eduarda e João chegaram ao nível do insuportável, Eduarda já pensava em como fazer para separar-se. João já deixara claro que não abriria mão do filho. E eram de cidades distantes, o que dificultaria bastante a separação. Eduarda desabafa com um amigo de João, em busca de conselho. Ao saber, João indigna-se, sente-se exposto. É bem verdade que quem mais explode, quem mais vê intenções hostis em qualquer afirmação, quem mais se mostra impermeável a qualquer abordagem, é ele. Ainda assim vai conversar com o amigo, na expectativa de provar alguma coisa, de mostrar como são justificadas suas atitudes. O amigo lhe surpreende:

- João, Eduarda te ama demais...

(A fresta se abre na porta, dá pra sentir a brisa entrando...). 

Algumas horas depois, ainda sem saber da conversa, Eduarda tenta uma nova aproximação. Liga e pergunta se pode buscá-lo no trabalho com o filho, nesta tarde de sol. Moram na praia, poderiam distrair um pouco o menino. Ele topa. O encontro é bom, ela toma sol, ele nada com o filho pequeno. Voltam pra casa em outro clima. Quando chegam Eduarda percebe, aterrorizada, que esquecera a porta de casa aberta. Isso já havia acontecido antes. João sempre explodia, achava um abusurdo esse descuido. Ele vê a porta escancarada. Olha pra ela. E diz:

- Estava com saudades, né?



Finalizando, lembrei-me de um pequeno poema de meu pai, Nello Nuno:


Atrás de uma porta aberta
há outra porta
aberta.
Atrás de uma porta fechada
há outra porta
e outra porta
e outra porta
fechadas.




terça-feira, 2 de junho de 2015

VITAMINA D E DOENÇAS AUTO-IMUNES

Editoria da Super Interessante, com matéria de capa sobre a vitamina D e as doenças auto-imunes. Vale a pena ler. E ler também a matéria que vai logo depois. 




AO LEITOR – VAMOS APANHAR
     EU SEI O QUE VAI ACONTECER: vamos apanhar. Vamos ser chamados de irresponsáveis por associações médicas por dar esperança a doentes sem salvação, vamos ser desqualificados como teóricos da conspiração por empresas farmacêuticas, vamos levar cutucadas de colegas jornalistas por darmos espaço demais a tratamentos sem comprovação. Tudo por causa da reportagem de capa desta edição, escrita por Daniel Cunha, que sofre de uma doença séria e, em sua própria luta para sobreviver, esbarrou numa pauta incrível. Sim, eu sei que ainda faltam muitas pesquisas antes de poder afirmar que a vitamina D evita câncer e cura depressão. Sei que incentivar as pessoas a tomar sol é muito arriscado, porque pode levar a um aumento nos casos de câncer de pele. Sei que talvez levem dez anos para que a comunidade médica tenha certeza de que o sol é mesmo fundamental para ficarmos vivos. 
     Acontece que, para alguns, dez anos é tempo demais. Daniel, nosso repórter, que tem esclerose múltipla, concluiu que não teria uma década para esperar respostas perfeitas - e saiu em busca das melhores respostas possíveis. Como ele, há milhões de pessoas no Brasil precisando urgentemente de informação - gente que pode se beneficiar do que Daniel descobriu. 
     Claro que levamos a sério nossa responsabilidade de dar informação confiável. Por isso, passamos muito tempo discutindo antes de levar o tema à capa. Mas o que nos ajudou a decidir é que temos clareza da nossa missão: trabalhamos para o público. Não para o establishment médico, não para os hospitais, não para os laboratórios. E, quando pensamos no que nosso leitor precisa saber, fica óbvio para a gente que fazer uma reportagem como essa, ainda que rodeada de incertezas, é obrigação - assim como colocar na capa os debates sobre o glúten e a maconha medicinal, duas outras histórias impressionantes ainda não inteiramente absorvidas pelas instituições médicas. Nossa obrigação é empurrar a medicina para frente, não correr atrás dela. 
     Da mesma forma, é nossa obrigação buscar respostas profundas para a crise hídrica que se espalha pelo nosso molhado país, como tentamos fazer na reportagem que começa na página 44. Sabemos que essas nossas respostas desagradam quase todo mundo. Afinal, elas revelam a profunda incompetência do governo paulista para lidar com o problema - e ao mesmo tempo deixam aparente a incapacidade do governo federal de compreender a natureza cíclica da água. Elas expõem o fato de que praticamente nenhum governo de nenhuma região do país está preparado para cuidar sistemicamente da água que precisamos para sobreviver. Vamos apanhar de todo mundo - do PSDB, do PT, do PMDB, do DEM, do PP, do PSD... 
     Tudo bem, não tem problema algum. Não trabalhamos para nenhum deles. Trabalhamos para você. 
Denis Russo Burgierman, DIRETOR DE REDAÇÃO








MATÉRIA DE CAPA – A POLÊMICA DO SOL


Um dia acordei e não senti o lado direito do rosto. Tinha desenvolvido uma doença incurável, que poderia me levar para a cadeira de rodas. Tudo indica que eu era vítima de uma epidemia global: falta de vitamina D, causada pela falta de sol.
REPORTAGEM Daniel Cunha

     UM DIA ACORDEI e não senti o lado direito do rosto. Achei esquisito, mas não dei muita importância. Nos dias seguintes, outras coisas foram acontecendo. Primeiro, perdi toda a sensibilidade no lado direito do corpo. Fiquei com falta de equilíbrio, visão turva, confusão mental. Não conseguia levantar da cama. Depois de dois meses de internações e exames, veio o diagnóstico: eu tinha esclerose múltipla, ou seja, meu sistema imunológico estava atacando meu próprio cérebro e a medula espinhal. Desenvolvi uma doença degenerativa, sem cura, que poderia me jogar em uma cadeira de rodas em menos de uma década. Um cenário desolador. Uma vez por semana eu tomava injeções de interferons (proteínas de defesa produzidas pelo próprio corpo), que acabavam por suprimir meu sistema imunológico. 
     A cada aplicação eu tinha uma febre forte e ficava prostrado pelos dois dias seguintes. Todas as semanas, eram dois dias perdidos. Parei de trabalhar e caí em uma amarga depressão. Eu tinha 24 anos. Meses depois, minha mãe viu a entrevista de um médico na internet. Ele se chama Cícero Coimbra, é neurologista da Unifesp, e tinha uma teoria diferente sobre a minha doença - para ele, um simples tratamento com vitamina D poderia ser a solução. 
     Comecei o tratamento com uma megadose dessa vitamina: 50 mil UI (unidades internacionais) por dia, cerca de oitenta vezes mais do que a dose diária recomendada. Segundo Coimbra, pacientes com doenças autoimunes, como a esclerose múltipla, têm características genéticas que dificultam a absorção de vitamina D, daí a necessidade de doses tão grandes. 
     "Nossa expectativa é que em seis meses, quando você tiver atingido o efeito completo do tratamento, a doença entre em remissão permanente, sem novas crises", afirmou Coimbra. Era quase um milagre diante das outras perspectivas para essa "doença sem cura". Optei por abandonar as injeções e, com elas, meu sofrimento semanal. Mas havia um risco. Com uma dose tão alta, o corpo passa a absorver mais cálcio dos alimentos e os rins podem ficar comprometidos. Para lidar com isso, tenho que beber pelo menos 3 litros de água ou suco e abandonar o leite e seus derivados ricos em cálcio. Sacrifício bem pequeno para o benefício que colhi. O tratamento está dando muito certo. A doença estacionou e, há cinco anos só com a vitamina D, nunca mais tive sintoma algum. Meus resultados já impressionam os neurologistas que não acreditavam que isso seria possível. Imagine então o que pensam ao se depararem com casos de pacientes que tinham ficado cegos e recuperaram a visão, ou que tinham deixado de andar e levantaram da cadeira de rodas, só seguindo o tratamento da vitamina D. Perto disso, ter a "minha doença controlada" é muito pouco. 
     Essa é a minha história. E você talvez tenha algo em comum com ela. Um estudo feito em 2010 pela USP constatou que nada menos do que 77,4% dos paulistanos apresentam deficiência de vitamina D durante o inverno (no verão o número cai, mas continua altíssimo: 37,3%). Ou seja: é bem possível que você tenha falta de vitamina D - e nem saiba disso. "Provavelmente, esse é o problema médico mais comum no mundo hoje", diz o endocrinologista Michael Holick, da Universidade de Boston. Em Pequim, o problema afeta 89% das adolescentes - e 48% dos idosos. Na Índia, 84% das grávidas - e assustadores 96% dos bebês. Nos Estados Unidos, 29% dos adultos. Em Recife e Salvador, metade das mulheres. Os dados, que vêm de diversos estudos locais, já que não há uma pesquisa global que envolva grandes populações, variam bastante, mas todos apontam na mesma direção. O mundo está vivendo uma 'epidemia' de baixa vitamina D. E isso parece estar ligado a uma quantidade impressionante de doenças: de depressão a diabetes, de esclerose múltipla (como a minha) a câncer, da dor crônica a Alzheimer. Já vamos falar sobre isso. Mas antes: por que está faltando vitamina D? 

PORTAS FECHADAS 
     Tem algumas grandes diferenças entre a D e todas as outras vitaminas. Para começar, embora até seja possível absorvê-la pela comida, sua maior fonte, disparado, é o sol. Sim, a luz solar - aquela mesma que agride e envelhece a pele e pode causar câncer de pele, o mais comum entre mulheres e o segundo mais comum entre homens no Brasil. O raio ultravioleta B (UVB) do Sol, o mesmo que nos torra, desencadeia uma série de reações químicas que produzem vitamina D (veja no infográfico). 
     Na verdade, a vitamina D não é uma vitamina. Em 1931, o químico alemão Adolf Windaus, da Universidade de Göttingen, constatou que essa substância tinha a mesma estrutura de hormônios esteroides, como os hormônios sexuais. "Trata-se, na realidade, de um pré-hormônio", explica a farmacêutica e bioquímica Rita Sinigaglia, da Unifesp. Nos anos 90, com a descoberta de que todo o organismo possui receptores para a vitamina D, difundiu-se que ela seria uma classe em si mesma devido a ausência de um órgão alvo específico, como acontece com os hormônios. Não é vitamina, mas o nome pegou, e assim ficou. Um pré-hormônio para lá de importante. "Imagine um edifício comercial, um arranha-céu com milhares de portas, que são abertas por uma única chave: a vitamina D. Como ficarão essas salas que não podem ser abertas nem fechadas sem ela?", compara o médico Cícero Coimbra. Vitamina D é uma chave bioquímica que abre as portas de milhares de diferentes processos fundamentais para a vida. Se seus níveis forem altos, não faltarão chaves e as células funcionarão em plena atividade. Mas, com níveis baixos, várias dessas funções ficarão trancadas - salas fechadas. Já se sabe de pelo menos 2.500 funções celulares que não funcionam sem a D. 
     Por isso, sem vitamina D, a vida é impossível. Há muito tempo se sabe, por exemplo, que níveis baixos demais acabam com nossa capacidade de formar ossos. É que ossos são feitos de cálcio - e, para absorver o cálcio, nosso sistema digestivo precisa de vitamina D. "Sem ela, os dinossauros não teriam aguentado o peso do próprio corpo" , explica Ian Wishart no livro Vitamin D: Is This the Miracle Vitamin? ("Vitamina D: vitamina milagrosa? ", ainda sem versão em português). 
     Os humanos, desde sempre, mantiveram uma relação íntima com o Sol. Mas, quando a Revolução Industrial entrou em cena, no século 18, essa história tomou outro rumo. Abarrotadas de trabalhadores, as cidades começaram a se estreitar, com prédios cada vez mais próximos, ficando cheias de sombras. A fuligem da queima de carvão, além de poluir, dificultava a passagem dos raios solares. Crianças da Inglaterra e do norte da Europa começaram a apresentar deformações nos ossos, bolinhas na pele e má-formação dos dentes. Estavam sofrendo de uma  doença pouco conhecida até então: o raquitismo. 
     Em 1916, Harry Steenbock, da Universidade de Wisconsin, descobriu que a luz solar era a resposta para o raquitismo. Surgiu então a moda da helioterapia (terapia da exposição solar), que havia sido idealizada pela primeira vez pelo historiador grego Heródoto, no século I. Na Europa e nos EUA, hospitais construíram solários e varandas para banhos de sol. Nessa mesma época, outros pesquisadores queriam entender por que a Noruega, ao contrário dos países vizinhos, registrava baixos índices de raquitismo. O segredo estava na dieta; os noruegueses se alimentavam, principalmente, de peixes selvagens - e consumiam muito óleo de fígado de bacalhau. O bioquímico americano Elmer McCollum, também da Universidade de Wisconsin, analisou esses alimentos e neles encontrou uma nova substância, que batizou de vitamina D. Os médicos passaram a receitar óleo de fígado de bacalhau, alimento que contém uma quantidade considerável da substância (veja tabela). A indústria do leite começou a fortificar o produto com vitamina D, que pode ser sintetizada quimicamente ou retirada do sebo de ovelhas. 
     Mas, de lá para cá, aconteceram duas coisas. Primeiro, nosso estilo de vida passou a incluir cada vez menos sol. Usamos protetor solar, nos cobrimos mais, ficamos mais tempo em locais fechados. No Brasil, o consumo de protetor sextuplicou em menos de 15 anos. Por uma boa causa, claro: proteger a pele do câncer. Só que isso derruba a produção de vitamina D. Aplicar um filtro solar fator (FPS) 15 reduz em 98% a produção dessa vitamina. 
     A outra mudança foi na própria atmosfera terrestre. Um estudo feito na Índia comparou dois grupos de bebês, com idades entre 9 e 24 meses. Todos seguiam a mesma dieta (as mães eram vegetarianas, e os bebês se alimentavam de leite materno), eram da mesma etnia e tinham o mesmo nível socioeconômico. A única diferença estava no ar. Um grupo morava num bairro com alto nível de poluição atmosférica; o outro respirava ar mais puro. Os resultados foram claríssimos - e chocantes. Os bebês do bairro poluído tinham 12 nanogramas de vitamina D por mililitro de sangue. Os outros tinham 27, mais que o dobro. A poluição literalmente bloqueia a luz solar, dificultando seu trabalho. "Os compostos químicos que estão no ar absorvem parte dos raios UVB", explica Lilian Cuppari, pesquisadora da Unifesp e uma das autoras do estudo sobre a falta de vitamina D no Brasil. Talvez nada ilustre melhor a importância do sol do que a história recente do Irã. Até a Revolução Iraniana, o país era governado pelo xá Reza Pahlavi, amigo dos Estados Unidos. Tudo era bem ocidentalizado, inclusive as roupas das pessoas. Em 1979, o aiatolá Khomeini tomou o poder, instaurou um governo islâmico, e as mulheres passaram a usar trajes tradicionais e recatados, que cobrem quase todo o corpo. O efeito sobre a saúde foi imediato - e fortíssimo. Entre 1989 e 2006, o número de casos de esclerose múltipla cresceu 800% no país (como mostrou um estudo realizado em 2013 pela Universidade de Oxford). 
     Até a década de 1990, acreditava-se que a única função da vitamina D era contribuir para a saúde dos ossos. Nos últimos anos, pipocaram novos estudos (foram mais de 2 mil só em 2014) e hoje sabe-se que ela age em diversas partes do corpo: incluindo cérebro, coração, estômago e pulmões. Ela retarda ou ajuda a evitar o aparecimento de Alzheimer e outras doenças degenerativas, alivia a asma, evita demência, esquizofrenia e bipolaridade e reduz os riscos de impotência sexual. Doenças cardiovasculares e infecciosas (como a tuberculose), diabetes, autismo e doenças autoimunes (psoríase, artrite reumatoide, lúpus, entre outras) estão relacionadas à falta de vitamina D. Um estudo da pediatra e neonatologista americana Carol Wagner, da Universidade da Carolina do Sul, mostrou ainda que a vitamina D reduz em 50% a possibilidade de complicações na gravidez. Ela interfere até no humor. Um artigo publicado no British Journal of Psychiatry analisou os resultados de testes com 30 mil pessoas e concluiu que há uma relação entre falta de vitamina D e depressão. 
     Sem falar no câncer. Há pesquisas mostrando que a vitamina D desacelera a progressão do câncer de mama e de próstata e pode até prevenir alguns tipos da doença. Também há indícios de que o mesmo  acontece com câncer de cólon, pâncreas, cérebro, bexiga, rins e leucemia. "A vitamina D previne o câncer da mesma forma que a vitamina C previne o escorbuto (doença que causa hemorragias bucais e perda dos dentes)", empolga-se o médico americano Cedric Garland, da Universidade da Califórnia. Para Garland, que participou de dezenas de estudos sobre o tema, níveis corretos de vitamina D poderiam evitar até 80% dos casos de câncer. 
     Apesar de tantas evidências, a vitamina D ainda é alvo de muita polêmica. A maior parte das sociedades médicas do mundo e dos órgãos responsáveis por definir as diretrizes para os profissionais de saúde continua recomendando cuidado com o sol e poucos reconhecem tratamento que sigo fazendo. Por quê? 

A VITAMINA DA DISCÓRDIA 
     Segundo a Sociedade Brasileira de Dermatologia "o único benefício reconhecidamente ligado à vitamina D é sua relação com a saúde óssea". Assim como a maioria dos dermatologistas do mundo, ela não recomenda a exposição aos raios solares. "Caso a pessoa tenha carência de vitamina D, sugerimos que tome isso de forma exógena, por meio de suplementos, em função dos riscos envolvidos", diz a dermatologista Flávia Ravelli, da SBD. Alguns estudos parecem dar razão aos céticos. Uma revisão de mais de 400 estudos realizada na França concluiu que a suplementação da vitamina não trouxe benefícios significativos na diminuição do risco de doença cardiovascular, câncer nem fraturas. Segundo os autores, a deficiência de vitamina D é consequência de doenças, não sua causa. Quem defende a vitamina diz que a maioria dos estudos usou doses muito baixas, de 2 mil UI por dia, e que seria preciso tomar pelo menos 4.500 UI para ter algum efeito na prevenção de doenças. Como afirma Michael Holick em um de seus livros sobre a vitamina D, "se o corpo pudesse declarar o método preferido para a obtenção da sua dose diária de vitamina D, ele com certeza aplaudiria de pé a opção do sol em vez de um frasco de pílulas". Afinal, esse inteligente processo de autorregulação não deve ter sido aperfeiçoado pelo nosso organismo à toa. Outro ponto importante é que o corpo não se intoxica com a vitamina D gerada pela luz do Sol, mas pode se intoxicar com a vitamina D proveniente da suplementação (é o risco do excesso de cálcio que eu preciso controlar no meu tratamento).
     A maioria dos oncologistas, neurologistas, psiquiatras e outros médicos que poderiam se beneficiar da vitamina D nem sabe de seu potencial. Por ser uma substância encontrada na natureza, ela não pode ser patenteada, e, portanto, pode-se imaginar que não atraia a atenção dos grandes laboratórios farmacêuticos, maiores patrocinadores das pesquisas e dos congressos médicos. 
     Mesmo não sendo aceito pela Academia Brasileira de Neurologia, que pede por mais estudos, o protocolo da vitamina D para doenças autoimunes desenvolvido por Cícero Coimbra se mantém principalmente pela popularidade entre os pacientes. Ele já tratou mais de 2,5 mil pessoas com esclerose múltipla desde 2002, bem como pacientes com lúpus, artrite reumatoide, psoríase, vitiligo e várias outras doenças. O sucesso fez com que outros médicos o procurassem para aprender o protocolo, e hoje mais de 20 profissionais espalhados pelo Brasil e outros no exterior (Argentina, Peru, Itália, Portugal) já aplicam o tratamento. Há relatos de outras experiências usando doses altas de vitamina D pelo mundo, geralmente para pesquisas pontuais. Mas nada se compara à consistência do que vem sendo feito por aqui. 
     Vários pacientes vem tendo bons resultados. Como Wagner, que foi diagnosticado com esclerose múltipla em 2007. Começou a fazer o tratamento convencional, teve muitos efeitos colaterais e nenhuma evolução, e em 2013 foi parar numa cadeira de rodas. Começou um tratamento com vitamina D e voltou a andar. Rafhael estava havia sete anos sem fazer caminhadas. Com quatro meses de tratamento, já conseguia jogar bola com os filhos. Juliana, que tinha dores terríveis por causa da artrite reumatoide e mal conseguia cuidar do filho, hoje coloca diariamente no Instagram fotos em posturas de ioga quase impossíveis. Fernanda, que sofre de dor crônica, começou a tomar a vitamina há sete meses, e melhorou. Átila, que tinha pneumonia e bronquite asmática desde a infância, também. Mesmo caso de Damaris e Maria Cecília - que tinham casos graves de lúpus (uma doença autoimune que afeta pele, articulações e rins) e melhoraram depois de começar tratamento com a vitamina. Há dezenas de relatos como esses. 
     De minha parte não há nenhuma dúvida. Tive alta e nunca mais apresentei qualquer sintoma da doença. E raramente tenho gripes ou resfriados, antes tão comuns. Não sei quando (ou se) deixarei de tomar as altas doses de vitamina D. Mas elas certamente são melhores que as injeções. Hoje até existem tratamentos à base de remédios orais, com chances de melhores resultados. Mas ainda possuem muitos efeitos colaterais, além de custarem muito caro. 
     No fim da história, se eu pudesse dar uma só dica sobre o futuro seria esta: tome um pouco de sol. Não muito: 15 minutos, sem protetor solar, bastam para a maioria das pessoas (sempre tendo o cuidado de não passar do ponto e ficar vermelho, o que é perigoso). Quanto maior a região do corpo exposta, maior será a produção. Não precisa expor o rosto - que é muito sensível e tem uma área relativamente pequena, portanto produz pouca vitamina D. Tomar sol nos braços e nas pernas já está bom. "Esperar o ônibus no ponto sem protetor já é capaz de elevar significativamente as taxas", explica a médica Lilian Cuppari. 
     Cada vez mais gente concorda com isso. O médico Walter Feldman, por exemplo. Ex-deputado federal, ele apresentou um projeto de lei para garantir aos trabalhadores, presos, estudantes e pacientes de hospitais, que passam mais de seis horas ininterruptas em ambientes fechados, o direito de tirar 15 minutos de descanso, antes das 16h, para tomar sol. Em 2010, o Ministério da Saúde americano aumentou a dose diária recomendada para pessoas saudáveis, que passou de 400 para 600 UI (no caso de idosos, 800 UI). Em 2013, a Europa fez uma mudança similar. Ainda é muito pouco - basta lembrar que, em apenas 15 minutos de exposição ao sol, podemos produzir mais de 10 mil UI. 
     Diferenças à parte, o importante mesmo é pegar o caminho de volta. Por mais que tenhamos nos esquecido disso nas últimas décadas, entocados em prédios, lambuzados de protetor solar, o Sol é o guia da nossa vida. Talvez seja hora de retomar essa antiga amizade.  

O SOL NA COMIDA 
Além do Sol (nosso corpo produz 10 mil UI da vitamina a cada 15 minutos de exposição a ele), a vitamina D também pode ser obtida por meio de certos alimentos. Veja os principais;
Óleo de fígado de bacalhau: 1 colher de sopa – 900 UI
Salmão: 1 porção (85 gramas) – 447 UI
Sardinha: 1 porção (suas sardinhas) – 46 UI
Atum em lata: 1 porção (85 gramas) –154 UI
Fígado: 1 porção (85 gramas)  – 42 UI
Ovo: 1 ovo – 40 UI
Cereal fortificado com vitamina D: 1 tigela – 40 UI
Leite fortificado com vitamina D:  1 copo (300 ml) – 115 a 124 UI

QUANTIDADE RECOMENDADA POR DIA: 600 UI (unidades internacionais). [*Quantidade recomendada pelo Ministério da Saúde dos EUA e pela maioria dos médicos. Para a Grassroots Health, defensora da vitamina D, seriam necessárias doses diárias de 4 mil a 5 mil UIs.]

EFEITOS NO ORGANISMO
A vitamina D está envolvida em vários processos essenciais para o funcionamento do corpo.
1- NOS OSSOS: RESISTÊNCIA. A vitamina D é usada como matéria-prima pelos osteoblastos e osteoclastos, que fabricam o tecido ósseo e eliminam partes danificadas. Sem ela, os ossos ficam quebradiços ou malformados.
2- NO CORAÇÃO: LIMPEZA. A vitamina D aparentemente aumenta a produção de renina plasmática, substância química ligada ao controle da hipertensão arterial (e, consequentemente, as doenças cardíacas).
3- NO CÉREBRO: ATIVIDADE. Neurônios de certas regiões, como o hipocampo e o córtex cingulado, supostamente usam a vitamina D para produzir proteínas. Há estudos que relacionam a falta dela com Alzheimer, autismo e depressão.
4- NO SISTEMA IMUNOLÓGICO: CONTROLE. A vitamina D parece fazer efeito sobre algumas doenças autoimunes, como esclerose e asma. Nesse tipo de doença, o sistema imunológico fica hiperativo - e ataca as células do próprio organismo.
5- NO CÂNCER: PROTEÇÃO. Há pesquisas que relacionam altos níveis de vitamina D com menor incidência de câncer, e um estudo mostrando o efeito dela sobre células tumorais.
COMO O SOL VIRA VITAMINA
Nosso corpo faz algo que parece mágica: sintetiza um elemento químico usando apenas luz.
1- O SOL - Os raios ultravioleta B penetram na pele, e reagem com uma substância presente nela: o 7-Dehidrocolesterol, que se transforma em vitamina D3.
2- O FÍGADO - A vitamina cai na corrente sanguínea e vai até o fígado, onde é transformada em outra coisa: calcifediol.
3- OS RINS - O calcifediol vai para os rins, onde é convertido em calcitriol, a forma ativa da vitamina D. Ela está pronta - e é distribuída pelo corpo por meio do sangue.

77% das pessoas em São Paulo, segundo um estudo da USP, têm algum grau de deficiência de vitamina D durante o inverno.

QUANTO SOL TOMAR?
Não é preciso, nem aconselhável, ficar torrando. Alguns minutos bastam:

ALTAS LATITUDES
INVERNO: PELE ESCURA – Não disponível  ; PELE CLARA – Não disponível
VERÃO: PELE ESCURA – 30-40 MIN. ; PELE CLARA –  5-10 MIN.

MÉDIAS LATITUDES
INVERNO: PELE ESCURA – 40-60 MIN.  ; PELE CLARA – 10-15 MIN.
VERÃO: PELE ESCURA – 25-30 MIN. ; PELE CLARA –  1-8 MIN.

LATITUDE TROPICAL
INVERNO: PELE ESCURA – 30-45 MIN.  ; PELE CLARA – 5-10 MIN.
VERÃO: PELE ESCURA – 15-20 MIN. ; PELE CLARA –  1-5 MIN.

MÉDIAS LATITUDES (abaixo do equador)
INVERNO: PELE ESCURA – 40-60 MIN.  ; PELE CLARA – 10-15 MIN.
VERÃO: PELE ESCURA – 25-30 MIN. ; PELE CLARA –  1-8 MIN.

ALTAS LATITUDES (abaixo do equador)
INVERNO: PELE ESCURA – Não disponível  ; PELE CLARA – Não disponível
VERÃO: PELE ESCURA – 30-40 MIN. ; PELE CLARA –  5-10 MIN.

Fontes: Livro The UV Advantage (Michael Holick) e revista New Scientist.

VOCÊ ESTÁ NO GRUPO DE RISCO?
Responda a estas perguntas e saiba se você tem propensão à falta de vitamina D
Sua pele é morena? (sim = 3 pontos)
Você é obeso? (sim = 3 pontos)
Sente fadiga muscular, dor nos ossos ou nas juntas? (sim = 2 pontos)
Tem mais de 60 anos? (sim = 2 pontos)
Mora ao sul de Montevidéu ou ao norte de Los Angeles? (em latitudes maiores do que 35 graus) (sim = 2 pontos)
Usa protetor solar antes de tomar sol? (sim = 2 pontos)
Raramente fica ao ar livre entre 10h e 15h? (sim = 2 pontos)
Não come peixe nem toma vitamina D em cápsulas? (sim = 1 ponto)
Está grávida? (sim = 2 pontos)
Tem aids, doenças no fígado, rins ou tireoide? (sim = 3 pontos)
Usa algum medicamento que atrapalha a absorção ou o metabolismo da vitamina D? (como o emagrecedor Xenical, o anti-epilético Dilantin, e medicamentos contra tuberculose) (sim = 1 ponto)
Fuma? (sim = 1 ponto)
Protege-se sempre do sol com sombrinha ou roupas? (sim = 2 pontos)
Tirou férias no último verão? (sim = -1ponto)

RESULTADO
0 A 2 PONTOS RISCO BAIXO
3 A 5 ALTO
6 A 8 MUITO ALTO
9 OU MAIS EXTREMO

quarta-feira, 25 de março de 2015

O fim do noivado



Imagine um homem bonito. E viril. E que ainda produz nas mulheres um sentimento maternal. (Droga existir um homem assim, né? Fazer o quê...)  Esse é o Gabriel. Imagine que ele gosta demais de uma menina, sempre quis namora-la e que, só depois de bons anos de luta, finalmente conseguiu. Essa é a Fernanda. Imagine que, como se não bastasse, o Gabriel é capaz de gestos de carinho e atenção extremamente cativantes, singulares, e ainda por cima, espontâneos e genuínos. Imagine, por fim, que os dois namoraram 5 anos e já estavam reformando o apartamento para se casarem daí a 8 meses quando ela pergunta se ele já a tinha traído.
Gabriel pensou um pouco. Teve medo que Fernanda já soubesse e que mentir fosse pior. E admitiu uma traição – verdadeiramente, a única – quando eles tinham por volta de um ano de namoro.
E Fernanda terminou tudo.
Gabriel ficou arrasado. Imagine um homem destruído. Era ele. Procurou seu psicólogo, consultou com um psiquiatra, passou a tomar remédio. Tentou de todas as formas convencer a noiva a reconsiderar. Mas ela foi irredutível. Nunca abriu brecha alguma. E xingava:
- Você deve achar que eu sou uma retardada, né? Que eu vou acreditar que foi só essa... é claro que você me traiu o tempo todo! Minhas amigas sempre me alertaram do garanhão que você é!
E Gabriel sentia-se ainda pior quando percebia que, ao menos em parte, colaborou pra esse sentimento. É um homem muito bonito, que trabalha num meio cheio de mulheres e carente de homens. Sempre foi muito assediado. Fora o caso já assumido, não ficou com mais ninguém. Mas sabe que permitia e até, de certa forma, incentivava, o assédio. Fazia bem pra ele. Ou, pelo menos, achava que fazia. As amigas deviam ver isso e comentar com Fernanda, imaginando o que ele devia fazer quando não na frente delas.  Devemos nos lembrar também o homem bonito que ele era, o belo casal que formavam e a inveja que deviam provocar. Isso também deve ter incentivado os comentários.
Fernanda nunca acreditou que pudesse ser só aquela vez.
E dava até pra entender essa vez. Eu conhecia Gabriel no início de seu namoro. E, apesar de ver seu entusiasmo com Fernanda, não conseguia acreditar que ele fosse ser feliz com ela. Achava Fernanda muito dura, agressiva e até hostil com ele. Ele trabalhava numa área difícil de conseguir reconhecimento, ainda não ganhava bem, e ela deixava claro que queria ”um homem mais decidido, resolvido, capaz de conquistar suas coisas”. Por mais de uma vez fez planos de mudar de estado sem considerar o que ele achava, não se importando se daria pra continuar o namoro ou não. Ele foi se machucando. Ele tentou lembrar a ela que a traição ocorrera justo nessa época, não se justificando, mas tentando se explicar. Não adiantou, ela não reconsiderou.
No auge da crise, ainda muito sofrido, numa conversa com seu irmão – e eles nem se davam muito bem -, Gabriel recebeu essa pergunta:
- Você uma vez me disse que Fernanda era muito tensa e que, por isso, você gostava de fazer uma massagem nela, depois do amor.
- É verdade...
- Quantas vezes você deve ter feito essa massagem nela?
- Sei lá, inúmeras, não dá pra contar...
- E quantas vezes ela fez massagem em você?
(... Silêncio...)
E o irmão fecha o diálogo com chave de ouro:
- Gabriel, quem sabe amar é você. Ela nunca soube amar como você sabe. Você sabe se dar, sabe se dedicar, manter o entusiasmo... ela não. Será se algum dia ela verdadeiramente lhe amou?
Deve ter sido a coisa mais importante e verdadeira que o Gabriel escutou na vida.
https://www.youtube.com/watch?v=MdTreZH0f8M
Ele sabe amar. Sabe cuidar, investir, se doar. Talvez não saiba muito bem como mirar. E acertou o alvo errado. Talvez confunda um pouco amor-paixão-obsessão. E na verdade esse tenha sido o erro que o desviou no seu namoro.
O amor é a amizade do querer.
A paixão é a ambição do querer.
A obsessão é a cobiça do querer.
A amor é sinônimo quase perfeito de amizade. Se o amor fosse uma mão, a palma desta mão – a base, o fundamento – seria a amizade. Os dedos dessa mão seriam o cuidado, o respeito, a admiração, o carinho e o desejo. O amor tem duas características interligadas. Ele é reversível e exige reciprocidade. Se eu penso amar alguém, vou na direção desse meu afeto e esta pessoa mostra não sentir amor por mim, meu amor – se é realmente amor – se retraí. Sem a reciprocidade do amor do outro o amor se reverte e deixa de ser amor.
O amor sempre é bom.
A paixão é a ambição do querer, é o querer com entusiamo. A paixão é a graxa que vem recuperar a flexibilidade das molas do amor. Ela nada tem de ruim. Ruim é fazer o que fazemos quase sempre: confundi-la com o amor. Pois como a paixão trás em sua natureza a inconstância – ela vai e volta, ela aumenta e diminui, ela aparece e some – sempre que ela arrefece achamos que não amamos mais. Mas se tivéssemos um pouco de paciência veríamos que ela retornaria. E que, mesmo com ela ausente, ainda assim o amor estaria presente. Um amor mais calmo, mais sereno, mas que se esperar um pouco, verá, mais cedo ou mais tarde, o retorno da paixão e do entusiasmo.
Assim a paixão pode ser boa ou ruim, dependendo de se a confundimos ou não com o amor.
A obsessão é a cobiça do querer. É um querer que não aceita que o outro não queira e que está disposto a quaisquer condições para permanecer com o outro. Nesse sentido a obsessão é o contrario do amor: ela é não reversível e não exige a reciprocidade. Contando que você fique comigo, pouco importa que seja por amor, se for por qualquer outro motivo – por culpa, dó, falta de opção melhor, medo de ficar só, constrangimento ou qualquer outro motivo – ainda assim, se prisioneiro da minha obsessão, eu aceitaria.
Se o amor é sempre bom e a paixão pode ser boa ou não, a obsessão nunca é boa. Ela é a própria negação do amor e a ausência da soberania. Já não escolho tampouco sou livre: sou é prisioneiro do meu querer e de minhas vontades.
Quanto sofrimento seria evitado se tivéssemos essa diferenciação bem clara em nossas cabeças?



Túlio e sua mãe



Não sei explicar direito o impacto que a consulta com Túlio me causou, desde o início.
Estava diante de mim um jovem de 29 anos completamente destruído. Nem sei como ele deu conta de vir para a primeira consulta. Deve ter sido arrastado por algum amigo ou parente. E, como estava em choque, consentiu.
Havia perdido a mãe.  Ela sentiu-se mal, foi internada e faleceu dois dias depois, de uma rara e ainda incompreendida doença. Era muito jovem, tinha 50 e poucos anos.
E não era uma mãe qualquer. Nunca vi uma relação de amor tão clara, intensa, bonita. Mãe e filho davam-se muitíssimo bem. Brigavam, ambos de forte temperamento, mas mesmo nas brigas o afeto entre os dois sequer se arranhava.
Ele era filho único, o pai não o assumiu. A família da mãe se distanciou quando ela engravidou. E ela o criou sozinha. Tiveram no início muitas dificuldades,  mas ela, lutadora, cresceu muito profissionalmente e já a muito tinham uma vida tranquila e resolvida financeiramente.
E os dois se amavam. E como!
“Eu não consigo dizer o que sinto pela minha mãe. E sei que ela sente o mesmo por mim (Durante meses Túlio citava a mãe, nas consultas, como se ela ainda estivesse viva.) Não dá para explicar direito. Amo minha namorada. Sei que vou amar meus filhos. Mas não acredito que vá se comparar. Nunca senti por ninguém o que eu sinto pela minha mãe. Até nossas brigas são diferentes. Nunca ficamos magoados um com o outro. Entendo agora que tem gente que faz besteira numa hora como essa. Se mata. Meu sofrimento é tão desesperador. Quem não tem fé se mata mesmo, numa hora como essa.”
E ele foi falando. E eu em silêncio. Quase não disse nada. Foi provavelmente a consulta na qual eu menos falei, em toda minha história de consultório.
Foram duas horas de consulta e ele descrevendo sua dor mas, principalmente, seu amor por sua mãe. Em vários momentos ele se emocionava muito. Fiquei profundamente tocado com sua história. Também tive minhas perdas.
Já pertinho do fim do horário eu o interrompi. E perguntei:
- Você já agradeceu?
Anos depois ele me contou que pensou ”Vou rachar esse homem ao meio”. (Dizia isso às vezes,  quando tinha raiva de alguém, fazendo um gesto de Karate com a mão espalmada que gelava a espinha de qualquer um. Ele é um homem grande. ). Mas, talvez por sentir que eu também estava emocionado com o que ele me disse, me concedeu o benefício da dúvida e, antes de executar o veredito do golpe fatal, perguntou:
- Agradecer o que?!
- Agradecer ter tido uma mãe como essa. Agradecer a beleza do amor que vocês conseguiram juntos. Agradecer os 29 anos que teve convivendo com uma pessoa tão maravilhosa... Nunca vi uma história de amor tão bonita! Você tem que agradecer demais, ter tido uma mãe tão maravilhosa e ter sabido como retribuir, devolver, conviver tão bem com ela... que coisa linda foi a relação de vocês....

Não apanhei. E dois anos mais tarde Túlio me perguntou se eu me lembrava de nossa primeira consulta...
- E tem como esquecer?



sábado, 7 de março de 2015

A primeira pressa do homem ou Dos riscos da ejaculação precoce

Estava Deus distribuindo as qualidades entre o homem e a mulher.
- Ok... Você então terás barba, mas poderás ficar calvo. E você terás os seios desenvolvidos e será capaz de amamentar...
E volta o olhar para a lista, conferindo novamente os itens.
- Deixe-me ver aqui... Acho que já foi tudo distribuído... Ah! Não! faltam ainda duas características... A primeira é a capacidade de mijar de pé...
- Eu quero! Eu Quero! Falei Primeiro!! - Berrou Adão, num pulo.
- Tudo bem, Eva?
- Tá certo senhor, deixa com ele então...
- Ok, obrigado pela compreensão Eva... Deixa eu ver aqui, sobrou então o que mesmo? Ah! Orgasmos múltiplos...
Dá pra imaginar a cara do Adão...

O segredo de Deus

“ Um dia no jardim do Éden, Eva disse a Deus:
- Deus, tenho um problema!
- Qual é o problema, Eva?
- Deus, sei que me criaste e me deste este maravilhoso jardim e todos estes maravilhosos animais e esta serpente tão graciosa, mas não sou feliz.
- Por que Eva? Disse a voz lá de cima.
- Deus, estou sozinha, e não suporto mais comer maçã.
- Bem, Eva, neste caso, tenho uma solução. Criarei um homem para ti.
- O que é um homem, Deus?
- Um homem será uma criatura defeituosa, com muitos atributos negativos, mentiroso, arrogante, vaidoso; em resumo fará da sua vida um inferno. Mas... será maior, mais rápido, e vai caçar e matar animais. Terá um aspecto estúpido quando ficar excitado mas, para que não te queixes, o farei a fim que satisfaça tuas necessidades. Será patético e sentirá prazer em coisas infantis como lutar e dar pontapés em uma bola. Não será muito inteligente, então, vai precisar do teu conselho para pensar adequadamente.
- Parece ótimo. Disse Eva, com um sorriso irônico.
- Porem..., disse Deus.
- Qual é o problema, Deus?
- Bem..., vais tê-lo com uma condição.
- Qual, Deus?

- Como eu disse, será orgulhoso, arrogante, egocêntrico... assim terás que deixar que ele acredite que eu o fiz primeiro. Lembre-se, este será o nosso pequeno segredo, Eva... de mulher para mulher...”

quinta-feira, 5 de março de 2015

Alta Tensão - Murilo Mendes




Salve mundo de amanhã
Que possuirás meus ossos,
Fuzilarás talvez meus sobrinhos:
Espero não te legar filhos
Para massacrares na guerra.

Os sem-trabalho vão visitar o ditador,
Recebem presentes de granadas.
Os banqueiros protegidos
Por máscaras contra gases asfixiantes
Montam guarda à porta dos palácios.
Meu anjo da guarda não aparece,
Os aviões inimigos
Estabelecem uma forte cortina de cerração
Em trono do seu corpo.
Minha mãe num delírio
Sai do arco-íris tocando piano
Que só eu escuto na desordem geral.

A tarde nasce com cuidados de manhã.
As órfãs vão passear de uniforme na praia
Enquanto as filhas dos capitalistas
Jogam bola diante delas,
Deslizam na bicicleta,
Voam na lancha azul.
Os elementos não me pertencem,
Não posso consolar
Nem ser consolado;
Não posso soprar em ninguém
O espírito da vida
Nem ordenar o crescimento das auroras
Nem oferecer uma aurora boreal à minha amada
Nem mudar a direção do olhar da amada,

Nem muda - ai de mim! - a direção do mundo.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

INFORMAÇÃO INICIAL PARA O PACIENTE COM TRANSTORNO DE PÂNICO




Você tem um problema bastante conhecido, que tem até um nome, é muito comum e é bastante bem-tratável. O nome deste problema é Transtorno do Pânico e ele consiste em crises de pânico súbitas, repentinas, imprevistas, espontâneas e recorrentes que incluem várias sensações como vertigem, tonteira, taquicardia, sudorese, sensações de falta de ar, formigamento, calafrios e muitas outras. Por causa delas, as pessoas tendem a acreditar que estão diante de um perigo como morte iminente, por ataque cardíaco ou asfixia, ou desmaio, queda, perda de controle, loucura, etc. É tão frequente que atinge cerca de 3 % da população. Você não é o único: em uma cidade de 10 milhões de habitantes isso representa cerca de 300.000 pessoas.

Como estas crises acontecem de repente, em situações variadas, e são muito assustadoras, as pessoas tendem a procurar, no início deste processo, ajuda médica, em geral cardiológica, por pensarem que se trata de um problema cardíaco. Aos poucos, com a repetição delas, começam a se sentir inseguras e pouco confiantes em ficar sozinhas ou saírem à rua desacompanhadas. Com isso passam a fazer muitas coisas apenas com a companhia de alguém, na ideia de que se acontecer algo, o acompanhante poderá tomar providências como levá-las a um médico ou para casa ou outro local sentido como seguro.

Às vezes este problema começa de forma mais gradual, sem grandes crises, mas com um progressivo aumento na insegurança de fazer coisas sozinho ou de enfrentar certas situações como passar em túneis, andar em conduções públicas (como ônibus, 166 metrô, trens, aviões), frequentar cinemas, teatros ou casas de espetáculos, andar em elevadores, pegar engarrafamentos, etc. A ideia costuma ser a de que, como alguma crise ou mal-estar pode acontecer numa situação dessas e, como a fuga delas é muitas vezes difícil, o melhor é evitá-las, para não correr o risco, seja de acontecer o perigo imaginado, seja de experimentar o intenso desconforto das sensações, ou de comportarse de modo inusitado.

Há debates ainda sobre as causas desse problema. Alguns médicos defendem que se trata de um problema bioquímico que só é tratável com remédios. Há argumentos fortes a favor desta posição, mas também há problemas, como os efeitos secundários que estas medicações produzem, como o fato de quase 2/3 dos pacientes voltarem a ter crises, uma vez suspenso o tratamento e ainda como as evidências de cura através de tratamentos não-medicamentosos como a psicoterapia comportamental. A nossa posição é que, quando as crises são muito intensas e frequentes, o uso de medicação torna-se necessário. Mas quando são menos frequentes ou mais brandas, uma intervenção estritamente psicológica é mais desejável. Por que? Porque pensamos que a causa deste problema é psicológica (o que não exclui a ocorrência de processos bioquímicos cerebrais). São dois motivos principais:

Em primeiro lugar, é preciso a gente entender que o modo da gente pensar afeta, isto é, determina o que se sente. Qualquer situação com que nos deparamos, automaticamente nos faz pensar coisas boas ou ruins sobre ela. Em uma situação, se eu penso que estou em perigo, sinto medo; se penso que vai acontecer uma coisa ótima, fico alegre. Assim, qualquer sentimento é sempre causado por algum pensamento ou algum evento externo. Mas as duas avaliações podem estar erradas: de repente, eu descubro que não estou em perigo e o medo passa; ou o que eu pensei que iria acontecer 167 de bom era um engano, e não fico mais alegre. É assim que muitas vezes as coisas se passam na nossa cabeça e na nossa vida.

É preciso também entender que sempre precisamos agir ou nos comportar para saber qual a consequência deste nosso comportamento. O que acontece em função de nosso comportamento determinará se nos comportaremos da mesma forma no futuro. Quando ficamos preocupados com certos problemas, tendemos a sentir ansiedade. Sentir medo ou ansiedade significa ter aquelas sensações desagradáveis (falta de ar, taquicardia, etc.). Se, com certas sensações do nosso corpo, pensamos que vamos ter um ataque cardíaco, é bastante aceitável que fiquemos apavorados. Estamos acreditando mesmo que corremos perigo. E se corremos perigo (ou pensamos que corremos), como não sentir medo? A ocorrência daquelas situações (produzidas por ideias de perigo) confirma mais ainda a idéia de um ataque cardíaco iminente, o que faz aumentar ainda mais a intensidade das sensações, e assim por diante. Rapidamente, portanto, numa espiral, acontece a crise de pânico. Mas, já reparou que tudo aquilo de pior que você prevê nunca acontece? Ora, isto significa que estamos avaliando mal ou pensando errado sobre estas situações. As avaliações que fazemos sobre estas sensações estão incorretas e precisam, portanto, ser reformuladas. Todas estas coisas fazem com que fiquemos meio como um radar reparando em tudo em volta e, sobretudo, em tudo no nosso próprio corpo. Por causa disso, qualquer alteração ou sensação “estranha” no nosso corpo quase sempre acaba sendo interpretada como um sinal de uma doença perigosíssima ou de um perigo fatal e iminente. Mas a gente pensar que alguma coisa é perigosa não quer dizer que, obrigatoriamente, ela seja, por mais que o nosso pensamento pareça verdadeiro. Às vezes nos enganamos mesmo quando pensamos que estamos certíssimos. Por isso, o tratamento consiste, em parte, em ensinar a você a 168 descobrir quando você está pensando certo e quando está pensando errado, para você poder deixar de ter medo de coisas que não são verdadeiras ou reais. Da mesma forma você vai aprender novos comportamentos de enfrentamento das situações que você tem medo. Por isso nós vamos discutir seus pensamentos que ocorrem nas sessões e os que ocorrem fora delas (e que você vai trazer anotados). Você vai aprender a testá-los para ver se são verdadeiros ou se são lógicos. Por exemplo, eu quero que você respire forte e rápido por dois minutos. Após 30 ou 40 segundos, ou mais um pouco, pare e preste atenção no que você está sentindo. Não são sensações semelhantes às que você teve quando em pânico? (Ex.: taquicardia, sudorese, boca seca, etc.) Veja, primeiro, como você pode fazer coisas com seu corpo, sem querer. Mesmo sem perceber, numa situação de estresse ou preocupação, respiramos profundamente. Isto pode, como vimos neste exercício, provocar sensações “estranhas” no nosso corpo (como essas que você acabou de sentir, semelhantes às de ansiedade). Assim, fica fácil interpretá-las (erradamente) como sinais de ataque cardíaco ou desmaio, por exemplo, e não apenas como (verdadeiramente) sinais de ansiedade decorrente de preocupações.

Você vai aprender que uma coisa é algo ser perigoso e outra é algo ser desagradável. Você já viu e sabe que o que se passou com você é algo muito desagradável. Mas é perigoso? Se apesar de sentir as sensações desagradáveis, nunca acontece nada do que você pensa que vai acontecer, isto não será uma prova de que as suas sensações não são sinais de perigo? Descobrir isso significa que você pode ter essas sensações, apesar de serem muito desagradáveis, e que você não precisa fugir delas de qualquer modo, desesperadamente, pois nada de perigoso está acontecendo. O problema se reduz apenas em você aprender a minimizar a intensidade com que elas aparecem, para não serem tão desconfortáveis. Para isso você vai aprender a relaxar e a respirar de uma forma que produza relaxamento; vai aprender a examinar os seus pensamentos para poder torná-los mais realistas e verdadeiros, que não possuam ideias de ameaça irreais e falsas. Conseguir mudar seus pensamentos ajudará você, como vimos, a deixar de sentir medo. Para exercitar tudo isso, será necessário você se expor gradualmente às situações que produzem ansiedade e às sensações que ela produz no seu corpo, de modo que você passe a reconhecer e compreender o que se passa com você, nos seus pensamentos e no seu corpo. Assim, você vai conseguir se acalmar nas próprias situações.

Com isso, você poderá (1) testar suas ideias distorcidas; (2) verificar que são falsas; (3) descobrir que não precisa fugir desesperadamente em busca de ajuda; (4) reconhecer que, sozinho, você poderá superar e resolver tudo até se acalmar; e (5) reconhecer que você não precisa de um acompanhante para ter segurança. Você terá então aprendido a manejar seu medo/ansiedade/pânico e estará praticamente bom.

Mas faltará ainda alguma coisa. O outro aspecto é que ficamos assim, com Transtorno de Pânico, quando temos medo de tomar decisões ou de agir de modo independente, autônomo, confiante e seguro em nossas vidas. Principalmente quando uma ou mais coisas estão insatisfatórias ou ruins na nossa vida e não sabemos que fazer para mudá-las (ou sabemos, mas temos medo de fazer o que queremos). Elas nos incomodam e provocam sentimentos ruins, desagradáveis, que a gente tenta negar, evitar percebê-las. Aí, qualquer situação que nos faça pensar que podemos perder o controle sobre elas nos ameaça, pelo contato com elas e pela idéia de perda de controle que pode nos levar a fazer o que desejamos mas temos medo de fazer. Isto pode produzir crises de pânico que seguem a espiral que descrevi antes. Vamos precisar ver o que está insatisfatório na sua vida e o que falta para que ela fique satisfatória, como você quer que ela seja. Vamos precisar ajudar você a se reorientar na vida; em vez de ficar se preocupando com o que há de ruim, com o que pode acontecer de ruim, vamos tentar fazer com que você consiga se orientar para o que há de bom, gostoso, positivo, desejável, realizador. Só manejar crises não é o suficiente; é preciso acabar com aquilo que começou a provocá-las. E isto, só com essa reorientação de vida.



In Psicoterapia Comportamental e Cognitiva, Bernard Rangé.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

A pipoca - Rubem Alves




A culinária me fascina. De vez em quando eu até me até atrevo a cozinhar. Mas o fato é que sou mais competente com as palavras do que com as panelas.

Por isso tenho mais escrito sobre comidas que cozinhado. Dedico-me a algo que poderia ter o nome de "culinária literária". Já escrevi sobre as mais variadas entidades do mundo da cozinha: cebolas, ora-pro-nobis, picadinho de carne com tomate feijão e arroz, bacalhoada, suflês, sopas, churrascos.

Cheguei mesmo a dedicar metade de um livro poético-filosófico a uma meditação sobre o filme A Festa de Babette que é uma celebração da comida como ritual de feitiçaria. Sabedor das minhas limitações e competências, nunca escrevi como chef. Escrevi como filósofo, poeta, psicanalista e teólogo — porque a culinária estimula todas essas funções do pensamento.

As comidas, para mim, são entidades oníricas.

Provocam a minha capacidade de sonhar. Nunca imaginei, entretanto, que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu.

A pipoca, milho mirrado, grãos redondos e duros, me pareceu uma simples molecagem, brincadeira deliciosa, sem dimensões metafísicas ou psicanalíticas. Entretanto, dias atrás, conversando com uma paciente, ela mencionou a pipoca. E algo inesperado na minha mente aconteceu. Minhas idéias começaram a estourar como pipoca. Percebi, então, a relação metafórica entre a pipoca e o ato de pensar. Um bom pensamento nasce como uma pipoca que estoura, de forma inesperada e imprevisível.

A pipoca se revelou a mim, então, como um extraordinário objeto poético. Poético porque, ao pensar nelas, as pipocas, meu pensamento se pôs a dar estouros e pulos como aqueles das pipocas dentro de uma panela. Lembrei-me do sentido religioso da pipoca. A pipoca tem sentido religioso? Pois tem.

Para os cristãos, religiosos são o pão e o vinho, que simbolizam o corpo e o sangue de Cristo, a mistura de vida e alegria (porque vida, só vida, sem alegria, não é vida...). Pão e vinho devem ser bebidos juntos. Vida e alegria devem existir juntas.

Lembrei-me, então, de lição que aprendi com a Mãe Stella, sábia poderosa do Candomblé baiano: que a pipoca é a comida sagrada do Candomblé...

A pipoca é um milho mirrado, subdesenvolvido.

Fosse eu agricultor ignorante, e se no meio dos meus milhos graúdos aparecessem aquelas espigas nanicas, eu ficaria bravo e trataria de me livrar delas. Pois o fato é que, sob o ponto de vista de tamanho, os milhos da pipoca não podem competir com os milhos normais. Não sei como isso aconteceu, mas o fato é que houve alguém que teve a idéia de debulhar as espigas e colocá-las numa panela sobre o fogo, esperando que assim os grãos amolecessem e pudessem ser comidos.

Havendo fracassado a experiência com água, tentou a gordura. O que aconteceu, ninguém jamais poderia ter imaginado.

Repentinamente os grãos começaram a estourar, saltavam da panela com uma enorme barulheira. Mas o extraordinário era o que acontecia com eles: os grãos duros quebra-dentes se transformavam em flores brancas e macias que até as crianças podiam comer. O estouro das pipocas se transformou, então, de uma simples operação culinária, em uma festa, brincadeira, molecagem, para os risos de todos, especialmente as crianças. É muito divertido ver o estouro das pipocas!

E o que é que isso tem a ver com o Candomblé? É que a transformação do milho duro em pipoca macia é símbolo da grande transformação porque devem passar os homens para que eles venham a ser o que devem ser. O milho da pipoca não é o que deve ser. Ele deve ser aquilo que acontece depois do estouro. O milho da pipoca somos nós: duros, quebra-dentes, impróprios para comer, pelo poder do fogo podemos, repentinamente, nos transformar em outra coisa — voltar a ser crianças! Mas a transformação só acontece pelo poder do fogo.

Milho de pipoca que não passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca, para sempre.

Assim acontece com a gente. As grandes transformações acontecem quando passamos pelo fogo. Quem não passa pelo fogo fica do mesmo jeito, a vida inteira. São pessoas de uma mesmice e dureza assombrosa. Só que elas não percebem. Acham que o seu jeito de ser é o melhor jeito de ser.

Mas, de repente, vem o fogo. O fogo é quando a vida nos lança numa situação que nunca imaginamos. Dor. Pode ser fogo de fora: perder um amor, perder um filho, ficar doente, perder um emprego, ficar pobre. Pode ser fogo de dentro. Pânico, medo, ansiedade, depressão — sofrimentos cujas causas ignoramos.Há sempre o recurso aos remédios. Apagar o fogo. Sem fogo o sofrimento diminui. E com isso a possibilidade da grande transformação.

Imagino que a pobre pipoca, fechada dentro da panela, lá dentro ficando cada vez mais quente, pense que sua hora chegou: vai morrer. De dentro de sua casca dura, fechada em si mesma, ela não pode imaginar destino diferente. Não pode imaginar a transformação que está sendo preparada. A pipoca não imagina aquilo de que ela é capaz. Aí, sem aviso prévio, pelo poder do fogo, a grande transformação acontece: PUF!! — e ela aparece como outra coisa, completamente diferente, que ela mesma nunca havia sonhado. É a lagarta rastejante e feia que surge do casulo como borboleta voante.

Na simbologia cristã o milagre do milho de pipoca está representado pela morte e ressurreição de Cristo: a ressurreição é o estouro do milho de pipoca. É preciso deixar de ser de um jeito para ser de outro.

"Morre e transforma-te!" — dizia Goethe.

Em Minas, todo mundo sabe o que é piruá. Falando sobre os piruás com os paulistas, descobri que eles ignoram o que seja. Alguns, inclusive, acharam que era gozação minha, que piruá é palavra inexistente. Cheguei a ser forçado a me valer do Aurélio para confirmar o meu conhecimento da língua. Piruá é o milho de pipoca que se recusa a estourar.

Meu amigo William, extraordinário professor pesquisador da Unicamp, especializou-se em milhos, e desvendou cientificamente o assombro do estouro da pipoca. Com certeza ele tem uma explicação científica para os piruás. Mas, no mundo da poesia, as explicações científicas não valem.

Por exemplo: em Minas "piruá" é o nome que se dá às mulheres que não conseguiram casar. Minha prima, passada dos quarenta, lamentava: "Fiquei piruá!" Mas acho que o poder metafórico dos piruás é maior.

Piruás são aquelas pessoas que, por mais que o fogo esquente, se recusam a mudar. Elas acham que não pode existir coisa mais maravilhosa do que o jeito delas serem.

Ignoram o dito de Jesus: "Quem preservar a sua vida perdê-la-á".A sua presunção e o seu medo são a dura casca do milho que não estoura. O destino delas é triste. Vão ficar duras a vida inteira. Não vão se transformar na flor branca macia. Não vão dar alegria para ninguém. Terminado o estouro alegre da pipoca, no fundo a panela ficam os piruás que não servem para nada. Seu destino é o lixo.

Quanto às pipocas que estouraram, são adultos que voltaram a ser crianças e que sabem que a vida é uma grande brincadeira...

"Nunca imaginei que chegaria um dia em que a pipoca iria me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu".

O texto acima foi extraído do jornal "Correio Popular", de Campinas (SP).

Rubem Alves

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Falou bonito

Como diria a mocinha da roça:
"Meu homem prosa bonito...
Prosar feito ele, ninguém!
Às vezes, sei que tá mentindo...
mas ele mente tão bem!
Que no final,
vou engolindo, engolindo,
e acabo achando
que razão
ele é que tem!"