domingo, 17 de junho de 2012

René Descartes aplicado à psicoterapia de casais


"O bom senso (ou a razão, preferem alguns...) é a coisa do mundo melhor partilhada, pois cada qual pensa estar tão bem provido dele, que mesmo os que são mais difíceis de contentar em qualquer outra coisa não costumam desejar tê-lo mais do que o têm."
René Descartes - Discurso do Método

Texto indicado pra se iniciar uma psicoterapia de casal. E, isso posto, todos presentes à entrevista podem considerar que têm razão a priori. O marido, a esposa, o namorado, a namorada, e até o terapeuta presente na sessão, têm razão. E isso não será discutido na terapia.Pois nunca se viu ninguém rezar para deus tirar seu excesso de razão:
- Oh, senhor, tira um pouco da minha razão, sempre sou eu que a tenho...

A partir desse ponto, a sugestão é que cada qual pense em três características próprias que gostaria de mudar para facilitar o relacionamento. E não problemas que o outro tem, porque ver no outro o que ele tem de errado é fácil. O complicado é cada qual ver a parte que lhe cabe. Ou, como diria Guimarães Rosa:

"Se o tolo admite, seja nem que um instante, que é nele mesmo que está o que não o deixa entender, já começou a melhorar em argúcia." 



sexta-feira, 15 de junho de 2012

Prece Irlandesa


“Que a estrada se abra à sua frente,
Que o vento sopre levemente às suas costas
Que o sol brilhe morno e suave em sua face,
Que a chuva caia de mansinho em seus campos…
E, até que nos encontremos de novo,
Que Deus lhe guarde na palma de Suas mãos.”

Emile Henry Gauvreay

“Fiz parte daquela estranha raça de pessoas sobre as quais se afirma que passam a vida fazendo coisas que detestam para ganhar dinheiro que não querem, para comprar coisas das quais não precisam, para impressionar pessoas de quem não gostam.”

quarta-feira, 13 de junho de 2012

José Bergamín



A velhice é uma máscara:
Se tu a tiras, descobres
O rosto infantil da alma.

A infância vai te seguindo
Durante toda a vida.
Mas ela vai mais devagar
E tu andas sempre depressa.

Quando a velhice lhe chega,
Não é que voltes à infância,
É que moderas o passo
E por fim a infância lhe alcança.

In Rimas y sonetos razagados

segunda-feira, 11 de junho de 2012

João Guimarães Rosa

“Eu queria decifrar as coisas que são importantes. Queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder. O que induz a gente para más ações estranhas, é que a gente está pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não sabe.”

quinta-feira, 7 de junho de 2012

A árvore da vida - Nello Nuno

Esse quadro de Nello Nuno foi pintado a partir deste texto:

"Entrementes, a consistência e o odor do carvalho começavam a falar, já perceptivelmente, da
lentidão e da constância com que a árvore cresce. O carvalho mesmo assegura que só
semelhante crescer pode fundar o que dura e frutifica; que crescer significa: abrir-se à
amplidão dos céus, mas também deitar raízes na obscuridade da terra; que tudo o que é
verdadeiro e autêntico somente chega à maturidade se o homem for simultaneamente ambas as
coisas: disponível ao apelo do mais alto céu e abrigado pela proteção da terra que oculta e
produz."


HEIDEGGER, Martin. Sobre o problema do Ser – O caminho do campo.



Quem descobre o mistério desse quadro?


quarta-feira, 6 de junho de 2012

Roland Barthes - Aula



“A ciência é grosseira, a vida é sutil.

... em cada signo dorme este monstro: um estereótipo: nunca posso falar senão recolhendo aquilo que se arrasta na língua.

... tratava-se, em suma, de compreender como uma sociedade produz estereótipos, isto é, cúmulos de artifício, que ela consome em seguida como sentidos inatos, isto é, cúmulos de natureza.”

"Em síntese: periodicamente, devo renascer, fazer-me mais jovem do que sou. (...) Empreendo, pois, o deixar-me levar pela força de toda vida viva: o esquecimento. Há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas vem em seguida outra, em que se ensina o que não se sabe: isso se chama pesquisar. Vem talvez agora a idade de uma outra experiência, a de desaprender, de deixar trabalhar o remanejamento imprevisível que o esquecimento impõe à sedimentação dos saberes, das culturas, das crenças que atravessamos. Essa experiência tem, creio eu, um nome ilustre e fora de moda, que ousarei tomar aqui sem complexo, na própria encruzilhada da sua etimologia: Sapientia: nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria, e o máximo de sabor possível".

Aula inaugural da cadeira de semiologia literária pronunciada em 07/01/77

Julián Marías - Tratado sobre a convivência - Concórdia sem acordo



Verdade e concórdia


(...)

Coexiste tudo o que existe juntamente e ao mesmo tempo. As coisas coexistem, e o homem com elas; conviver é viver juntos, e se refere às pessoas como tais. Isto é, com suas diferenças, com suas discrepâncias, com seus conflitos, com suas lutas no âmbito da convivência, dessa operação que consiste em viver juntos.

Isto é precisamente a concórdia, cuja condição é o escrupuloso respeito ao que é verdade, ou seja, à estrutura da realidade, o que exclui a homogeneidade, a unanimidade, que escassas vezes existe.

(...)

Viver, para o homem, não é um empreendimento demasiado fácil. Ele não tem outra solução senão acertar; sua vida é permanentemente insegurança; não dispõe de um sistema eficaz de instintos que orientem e regulem o seu comportamento; tem projetos, sendo necessário decidir se são ou não factíveis, e se são conciliáveis com os dos outros homens. Por essa razão, o erro, tão raro na vida animal, é ameaça constante da vida humana. Por isso, o homem não pode senão pensar, usar a razão, que nem sempre possui em grau necessário, mas de que – e isso é decisivo – precisa, sem a qual não pode viver humanamente.

(...)

Trata-se, pois, do que acontece à verdade; quando esta é desconhecida ou negada, não só se perde a liberdade e se é servo da falsidade, como também é suscitada a destruição da concórdia, da capacidade de conviver conservando todas as diferenças, as discrepâncias ocasionais; em suma, o conjunto das diversas e verdadeiras liberdades.

Abertura e fechamento

Cada vez parece mais confirmada minha convicção de que sem uma considerável dose de bondade se pode ser “esperto”, mas não verdadeiramente inteligente. (...) A inteligência consiste sobretudo em abrir-se à realidade, deixar que ela penetre na mente e seja aceita, reconhecida, possuída.(...) Inteligência é compreender a realidade, o que é diferente de utilizá-la ou manipulá-la.

É característico do homem inteligente “esperar”, não precipitar-se, deixar que o que aparece ante seus olhos ou procura penetrar em seus ouvidos se manifeste por inteiro, exiba seus títulos de justificação, seja examinado por vários lados, de distintos pontos de vista. Essa é a razão pela qual as mulheres, quando de fato o são – ou seja, quando são fiéis à sua condição própria -, se revelam sumamente inteligentes, proporcionalmente mais do que os homens, tantas vezes apressados.

(...)

Às vezes, o fechamento se deve `a escassez de inteligência, à incapacidade de se refletir sobre o que se leu ou ouviu. (...)

Mas há uma forma de fechamento mais profundo e que merece ser examinado. Não se trata de simples fechamento, obturação da mente diante do que procura penetrar nela. Tem um caráter defensivo, é uma resistência ao real, como se este fosse uma agressão ou ameaça. Por isso esta forma de fechamento é hostil, quase sempre polemica, beligerante.

A pessoa sente-se em perigo, inquieto, agredido, não por uma tese distinta ou oposta, mas pela própria realidade. Isto é, defende o que no fundo sabe que não é verdade, identifica-se com isto, como se fosse ele mesmo, rejeita o diferente.

Não se compreende bem essa atitude. Como se pode a realidade ser inimiga? Não é ela aquilo que nos cerca, com o qual temos que construir a nossa vida? A estrutura efetiva do mundo, a historia que de fato aconteceu, a consistência do humano, as condições da personalidade, como pode ser isso adverso, devendo ser combatido e rechaçado? Se olharmos com cuidado, é a expressão máxima de insegurança, o temor de ver dissipar-se aquilo se considerou, sem motivo, como fundamento da própria vida.

Essa impressão de que há muitos que não percebem nada, que persistem imperturbáveis em noções que não resistem a um minuto de reflexão e análise, ao confronto com os fatos, é desalentadora. É sobremaneira freqüente quando intervem a paixão política, quase sempre associada à mentira. (...) Há formas extremas que estão rigorosamente estabelecidas sobre a falsificação, para as quais a realidade é um veneno mortal.

Mas ao lado desse fechamento, há sintomas encorajadores de abertura - muito especialmente entre pessoas que não tem grandes pretensões, que não procuram definir, que não crêem que sabem tudo. São aquelas que buscam precisamente inteirar-se, perceber – isto é, integrar-se, - que sentem alegria e gratidão quando lhes é mostrado algo que não tinham visto ou com o que não tinham contado.

E essa magnitude é máxima se descobrem que se achavam em erro, se se vêm obrigadas a corrigir, isto é, a instalar-se na verdade que lhes escapara. Sentem que são melhores, mais reais, que aconteceu um fortalecimento de sua própria pessoa.

(...)

Creio perceber sintomas de abertura nos jovens, que às vezes adota a forma de desorientação, provavelmente porque eles têm de combater as tentações de fechamento para procurar ser eles mesmos, aquilo que no fundo desejam ser. Se não me equivoco, isto é o mais esperançoso no horizonte.

(tradução minha)

Obsceno



“Obsceno é toda mitificação. Obsceno é dar um tamanho às chamadas grandes individualidades que reduz o homem comum a um inseto. Obsceno é não fazer uma reflexão pra valer sobre o conceito de mérito, dividindo tão mal o respeito humano. Obsceno é prostar-se de joelhos diante de mitos que são usados até mesmo como instrumento de dominação. Obsceno é abrir mão do exercício crítico e mentir tanto.”
Raduan Nassar, in Cadernos de Literatura Brasileira

domingo, 3 de junho de 2012

Lúcio Cardoso - Crônica da casa assassinada



“- O diabo, minha filha, não é como você imagina. Não significa a desordem, mas a certeza e a calma.

- Que é que você imagina como uma casa dominada pelo poder do mal? É uma construção assim, firme nos seus alicerces, segura de suas tradições, consciente da responsabilidade de seu nome.

- É o que poderíamos chamar de um lar solidamente erguido neste mundo. Não há nele, de tão definitivo, nenhuma fenda por onde se desvende o céu.

- Muitas vezes em dias passados, imaginei o que poderia tornar essa casa tão fria, tão sem alma. E foi aí que descobri a terrível imutabilidade de suas paredes, a gelada tranqüilidade das pessoas que habitam nela. Ah, minha amiga, pode acreditar em mim, nada existe de mais diabólico do que a certeza. Não há nela nenhum lugar para o amor.”