sábado, 28 de julho de 2012

2.E Riobaldo diz da nossa pressa em classificar as pessoas:

(Da série "Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida", parte 2):



E Riobaldo, ainda bem no início do livro, já começa a dizer o que ainda dirá muitas vezes: que as pessoas não são facilmente classificáveis, que nem tudo é tão claro assim, que a vida é fluida e muda muito... e começa com dois casos exemplares, duas parábolas que nos deixam a pensar.

"Tudo é e não é... Quase todo mais grave criminoso feroz, sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos! Sei desses. Só que tem os depois – e Deus, junto. Vi muitas nuvens.

Mas, em verdade, filho, também, abranda. Olhe: um chamado Aleixo, residente a légua do Passo do Pubo, no da-Areia, era o homem de maiores ruindades calmas que já se viu. Me agradou que perto da casa dele tinha um açudinho, entre as palmeiras, com traíras, pra-almas de enormes, desenormes, ao real, que receberam fama; o Aleixo dava de comer a elas, em horas justas, elas se acostumaram a se assim das locas, para papar, semelhavam ser peixes ensinados. Um dia, só por graça rústica, ele matou um velhinho que por lá passou, desvalido rogando esmola. O senhor não duvide – tem gente, neste aborrecido mundo, que matam só para ver alguém fazer careta... Eh, pois, empós, o resto o senhor prove: vem o pão, vem a mão, vem o são, vem o cão. Esse Aleixo era homem afamilhado, tinha filhos pequenos; aqueles eram o amor dele, todo, despropósito. Dê bem, que não nem um ano estava passado, de se matar o velhinho pobre, e os meninos do Aleixo aí adoeceram. Andaço de sarampão, se disse, mas complicado; eles nunca saravam. Quando, então, sararam. Mas os olhos deles vermelhavam altos, numa inflama de sapiranga à rebelde; e susseguinte – o que não sei é se foram todos duma vez, ou um logo e logo outro e outro – eles restaram cegos. Cegos, sem remissão dum favinho de luz dessa nossa! O senhor imagine: uma escadinha – três meninos e uma menina – todos cegados. Sem remediável. O Aleixo não perdeu o juizo; mas mudou: ah, demudou completo – agora vive da banda de Deus, suando para ser bom e caridoso em todas suas horas da noite e do dia. Parece até que ficou o feliz, que antes não era. Ele mesmo diz que foi um homem de sorte, porque Deus quis ter pena dele, transformar para lá o rumo de sua alma. Isso eu ouvi, e me deu raiva. Razão das crianças. Se sendo castigo, que culpa das hajas do Aleixo aqueles meninozinhos tinham?!

Compadre meu Quelemém reprovou minhas incertezas. Que, por certo, noutra vida revirada, os meninos também tinham sido os mais malvados, da massa e peça do pai, demônios do mesmo caldeirão de lugar. Senhor o que acha? E o velhinho assassinado? – eu sei que o senhor vai discutir. Pois, também. Em ordem que ele tinha um pecado de crime, no corpo, por pagar. Se a gente – conforme compadre meu Quelemém é quem diz – se a gente torna a encarnar renovado, eu cismo até que inimigo de morte pode vir como filho do inimigo. Mire veja: se me digo, tem um sujeito Pedro Pindó, vizinho daqui mais seis léguas, homem de bem por tudo em tudo, ele e a mulher dele, sempre sidos bons, de bem. Eles têm um filho duns dez anos, chamado Valtei – nome moderno, é o que o povo daqui agora apreceia, o senhor sabe. Pois essezinho, essezim, desde que algum entendimento alumiou nele, feito mostrou o que é: pedido madrasto, azedo queimador, gostoso de ruim de dentro do fundo das espécies de sua natureza. Em qual que judia, ao devagar, de todo bicho ou criaçãozinha pequena que pega; uma vez, encontrou uma crioula bentabêbada dormindo, arranjou um caco de garrafa, lanhou em três pontos a popa da perna dela. O que esse menino babeja vendo, é sangrarem galinha ou esfaquear porco. – “Eu gosto de matar...” – uma ocasião ele pequenino me disse. Abriu em mim um susto; porque: passarinho que se debruça – o vôo já está pronto! Pois, o senhor vigie: o pai, Pedro Pindó, modo de corrigir isso, e a mãe, dão nele, de miséria e mastro – botam o menino sem comer, amarram em árvores no terreiro, ele nu nuelo, mesmo em junho frio, lavram o corpinho dele na peia e na taca, depois limpam a pele do sangue, com cuia de salmoura. A gente sabe, espia, fica gasturado. O menino já rebaixou de magreza, os olhos entrando, carinha de ossos, encaveirada, e entisicou, o tempo todo tosse, tossura da que puxa secos peitos. Arre, que agora, visível, o Pindó e a mulher se habituaram de nele bater, de pouquinho em pouquim foram criando nisso um prazer feio de diversão – como regulam as sovas em horas certas confortáveis, até chamam gente para ver o exemplo bom. Acho que esse menino não dura, já está no blimbilim, não chega para a quaresma que vem... Uê-uê, então?! Não sendo como compadre meu Quelemém quer, que explicação é que o senhor dava? Aquele menino tinha sido homem. Devia, em balanço, terríveis perversidades. Alma dele estava no breu. Mostrava. E, agora, pagava. Ah, mas, acontece, quando está chorando e penando, ele sofre igual que se fosse um menino bonzinho... Ave, vi de tudo, neste mundo! lá vi até cavalo com soluço... – o que é a coisa mais custosa que há.” (pg 14, GSV)

Quando eu devia ter uns 11 anos, conversando com um amigo e sua mãe, eu disse que as pessoas todas eram boas e eram más, e que sempre tinha algo de positivo que a gente podia ver em alguém. A mãe de meu amigo me disse, de modo bem ríspido, que pensar assim era falta de caráter, que temos que saber definir as pessoas, definir quem elas de fato são. Eu fiquei bem chateado e preocupado na época, pensando que não tinha caráter, apesar de não entender muito bem o que seria isso...

Riobaldo ajuda neste ponto, ao dizer da dificuldade de se classificar assim uma pessoa. Não que não existam pessoas bem ruins e bem boas, mas diz sim que é difícil definir onde essas coisas começam ou terminam, ou o que é ser bom ou ser mal. Os trechos acima apontam essa direção. Assim como quando ele diz, mais adiante, que as pessoas afinam e desafinam e voltará a dizer, mais tarde, em várias passagens. 

“O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão. E, outra coisa: o diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro – dá gosto! A força dele, quando quer – moço! – me dá o medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho – assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza. A pois: um dia, num curtume, a faquinha minha que eu tinha caiu dentro dum tanque, só caldo de casca de curtir, barbatimão, angico, lá sei. – “Amanhã eu tiro...” – falei, comigo. Porque era de noite, luz nenhuma eu não disputava. Ah, então, saiba: no outro dia, cedo, a faca, o ferro dela, estava sido roído, quase por metade, por aquela agüinha escura, toda quieta. Deixei, para mais ver. Estala, espoleta! Sabe o que foi? Pois, nessa mesma da tarde, aí: da faquinha só se achava o cabo... O cabo – por não ser de frio metal, mas de chifre de galheiro. Aí está: Deus... Bem, o senhor ouviu, o que ouviu sabe, o que sabe me entende...”
(pg 23, GSV)

sexta-feira, 27 de julho de 2012

1. E o livro começa, com Riobaldo perguntando sobre sobre a existência do diabo



(Da série "Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida", parte 1).


Imagine a cena: um homem escuta tiros e percebe que vêem de uma casa de fazenda. Chegando lá um senhor explica que estava só praticando tiro, mirando numa árvore. Esse senhor é Riobaldo, personagem principal e narrador do livro "Grande Sertão: Veredas". E aqui a estória começa. Por centenas de páginas Riobaldo contará sua vida para esse interlocutor, cujas respostas nunca estarão escritas no livro. E falará do medo, da pressa, da coragem, da valentia, do amor, do temor, do diabo e do homem.


E João Guimarães Rosa começa seu único romance pela discussão sobre a existência ou não do diabo.


“De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de dificel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp’ro, não fantaseia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range rede. E me inventei neste gosto, de especular idéia. O diabo existe e não existe? Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias. O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água se caindo por ele, retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma? Viver é negócio muito perigoso...


Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! – é o que digo. O senhor aprova? Me declare tudo, franco – é alta mercê que me faz: e pedir posso, encarecido. Este caso – por estúrdio que me vejam – é de minha certa importância. Tomara não fosse... Mas, não diga que o senhor, assisado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço! Sua alta opinião compõe minha valia. Já sabia, esperava por ela-já o campo! Ah, a gente, na velhice, carece de ter sua aragem de descanso. Lhe agradeço. Tem diabo nenhum. Nem espírito. Nunca vi. Alguém devia de ver, então era eu mesmo, este vosso servidor. Fosse lhe contar... Bem, o diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até: nas crianças – eu digo. Pois não é ditado: “menino – trem do diabo”? E nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento... Estrumes.... O diabo na rua, no meio do redemunho...”


E termina o livro da mesma forma, concluindo que “O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é o homem humano.”


E eu só fui perceber essa simetria na quarta leitura do livro. Daí duas conclusões: a primeira é que a discussão sempre existente se Riobaldo fez ou não um pacto com o diabo parece indevida, uma vez que o autor afirma logo de cara e depois termina seu livro negando a existência do mesmo. A segunda é que nos homens temos o bem e o mal dentro de nós, e aceitar isso já é de grande ajuda para se ter uma vida melhor. Ou ao menos para minimizar o mal que nos faz o sentimento mais imprestável que existe: a culpa.


Ao vermos uma criança chorando, sentindo-se culpada por algo que fez e pelo qual foi repreendida, supomos estar frente a um verdadeiro arrependimento e imaginamos assim que o comportamento criticado dificilmente acontecerá novamente. Ledo engano. Pode até acontecer um retraimento na criança daquele tipo de ação que foi repreendido. Mas, se o foco da reprimenda foi a produção de culpa e não a compreensão do erro cometido – este é o padrão mais comum em nossa cultura – a criança em questão não saberá verdadeiramente em qual aspecto suas atitudes estavam inadequadas, e, quando atenuado o temor diante da reprimenda original, muito provavelmente voltará às suas atitudes anteriores.


A culpa não se presta para a promoção da mudança. Mudamos se compreendemos o fundamento do nosso erro. A culpa não nos aproxima desta compreensão, pelo contrário, nos afasta dela. A pessoa que se sente culpada, ao sofrer diante do acontecido expia com seu suposto arrependimento seus incômodos sentimentos. E assim se afasta da compreensão de seu erro.


Mesmo porque diante da culpa não se erra, peca-se. E não se erra diante do outro, peca-se contra Deus.


Se compreendêssemos os fundamentos de nossos erros poderíamos voltar atrás e escolher outro caminho. Se não estamos mais na direção equivocada estamos desobrigados por que mudamos, não respondemos mais pelo que caducou.


A culpa só presta para incutir temor e assim possibilitar que a manipulação possa ocorrer mais facilmente.


E Riobaldo inicia sua estória.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Não quero ser grande



folha de sao paulo, domingo, 25 de julho de 2004.

“A obsessão atual por coisas infantis pode parecer um detalhe trivial, mas a saudade onipresente da infância entre os adultos jovens é sintomática de uma insegurança profunda em relaçao ao futuro. A hesitação em aderir à condição adulta reflete uma aspiração reduzida à independência, ao compromisso e à experimentação.
...
O senso de desespero que cerca a identidade adulta ajuda a explicar por que a cultura contemporânea tem dificuldade em traçar uma linha divisória entre a infância e a idade adulta. A infantilidade é idealizada pela simples razão de que sentimos desesperança ao pensarmos em viver a alternativa. A depreciação da condição adulta é resultado da dificuldade que nossa cultura tem em afirmar os ideais normalmente associados a essa etapa da vida das pessoas.
Maturidade, responsabilidade e compromisso sao afirmados debilmente pela cultura contemporânea. Tais ideais contradizem o senso de impermanência que prevalece no cotidiano. É o esvaziamento gradativo da identidade adulta que desencoraja os jovens, homens e mulheres, a aderir com afinco à próxima etapa de suas vidas”.

Frank furedi, sociologo. 

Nello Nuno



vou subir a escada até a escalada da noite
conversar com o grilo que cricrila em meu ouvido
hoje não tenho casa, nem mulher , nem filho
só existe o curto-circuito na cuca
vou trepar no alcool, minha escada até a inconsciencia
não sou erótico, sensual, nem nada
sou amorfo, amoral, demente
sou o cú da madrugada.
Não quero amor, quero sossego
a manha rosa , e eu negro.
Quero banho quento no banheiro
livro sem letra para ler no assento da privada.

1972.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Haroldo de Campos


Rima petrosa 2


 1.

não
da planta do pé
à palma
da mão

não
em cada
unha
em cada
artelho
do dedo
mínimo ao
dedão

não
da anca
da potranca
à curva do joelho
da cintura
ao tornozelo
do cotovelo
ao pulmão

2.
um não
de pedra
um não
de sola
um não
sem nenhum
senão

em cada fio
de cabelo
em cada
dente
em cada
pelo do
pente
do bico do
seio
ao monte de
vênus
da axila
à virilha
à ilharga
à barriga
da perna
do céu da
boca
à interna
rosa em
botão

3.
mas se de tamanho não
tão unânime um não tão
se dessa massa de nãos
como de massa de pão
fermentar um dia um sim
(por mínimo que seja
o seu roçar de cetim)

então nesse meu
brinquedo (sinistro)
de urso
nesse meu jogo
(triste)
de leão –

a contra-sim
a contra-senso
a contra-mim –

serei eu a
dizer não

4.
um não de sins
o meu não
de fel coado de mel
que para dizê-lo assim tão
no seu esforço de não
(como no rim uma pedra
que endureça de paixão)
será preciso queimar
a mão direita no gelo
ou na chapa do fogão
abrir o peito e morder
(como Aquiles quis fazer
ao rei grego Olho-de-Cão
como fez Madona Loba
ao trovador Cabestão)
esse músculo vermelho
coração que bate sim
encarniçado em seu não.


Haroldo de Campos





Ao afirmar o não a pessoa se posiciona. Talvez ainda não saiba o que quer. Mas já sabe o que não quer, o que já é muita coisa. Toda negação trás em si uma afirmação. Esse poema mostra muito bem isso.

Ou, nas palavras de José Régio...


“Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!”

domingo, 22 de julho de 2012

Nello Nuno


DEPOIMENTO

O simples guarda o enigma que é grande e permanente.
Viver – filosofar depois.
Sentir – pensar depois.
Agir – caminhar os vales e montanhas de Annamélia.
Os filhos, brincar de roda, rodar risadas, sorrir lembranças.
Esta é minha estrada sem atalhos.
Pintura é meu sentir momentos, meu sorrir lembranças, meu brinquedo de vida.
Pássaro branco, cavalo alado, pomba e paz.
É a procura do simples e do alegre. Da ternura e da carne.
Do gesto e da música.
Do grito e do riso.
É o meu amor à vida.

Nello Nuno, 1975.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Stephen Jay Gould - A falsa medida do homem





“Os cidadãos da República, aconselhava Sócrates, deveriam ser educados e depois classificados, de acordo com o seu mérito, em três classes: governantes, auxiliares e artesãos. Uma sociedade estável exige que essa divisão seja respeitada e que os cidadãos aceitem a condição social que lhes é conferida. Mas como é possível assegurar essa aceitação? Sócrates, incapaz de elaborar um argumento lógico, forja um mito. Com um certo constrangimento, ele diz a Glauco:

Falarei, embora realmente não saiba como te olhar diretamente nos olhos, ou com que palavras expressar a audaz ficção... Deve-se dizer a eles [os cidadãos] que a sua juventude foi um sonho, e que a educação e o treinamento que de nós receberam foi apenas uma aparência; na realidade, durante todo aquele tempo, eles estavam se formando e nutrindo no seio da terra...

Glauco, surpreso, exclama: “Tinhas boa razão para te envergonhares da mentira que ías contar.” “É verdade”, responde Sócrates, “mas ainda há mais; só te contei a metade.”

Cidadãos, dir-lhes-emos em nossa história, sois todos irmãos, mas Deus vos deu formas diferentes. Alguns de vós possuís a capacidade de comando e em vossa composição entrou o ouro, e por isso sois os merecedores das maiores honras; outros foram feitos de prata para serem auxiliares; outros, finalmente, Deus os fez de latão e ferro para que fossem lavradores e artesãos; e as espécies em geral serão perpetuadas através de seus filhos... Um oráculo diz que, quando um homem de latão ou ferro recebe a custódia do Estado, este será destruído. Esta é a minha fábula; haverá alguma possibilidade de fazer com que nossos cidadãos acreditem nela?

Glauco responde: “Não na atual geração; não existe maneira de se consegui-lo; mas é possível fazer com que seus filhos creiam nela, e os filhos de seus filhos, e, depois deles, a sua descendência.”

Neotonia

‎"A flexibilidade é a marca da evolução humana. Se os seres humanos evoluíram, como acredito, por neotenia, então somos, num sentido pouco mais que metafórico, crianças que não crescem. (Na neotenia, o ritmo de desenvolvimento mostra-se mais lento, e as etapas juvenis dos antepassados convertem-se nos traços adultos dos descendentes.) Muitas características essenciais de nossa anatomia vinculam-nos às etapas fetais e juvenis dos primatas: o rosto pequeno, o crânio abobadado, o cérebro grande em relação ao tamanho do corpo, o dedo grande do pé não rotado, o foramen magnum na base do crânio, determinando a orientação correta da cabeça na postura ereta, a concentração de pelos na cabeça, nas axilas e na zona pubiana. Se uma imagem vale por mil palavras, observe-se a figura 7.1 . Em outros mamíferos, a exploração, o jogo e o comportamento flexível são qualidades dos jovens, e só raramente dos adultos. Não só conservamos a marca anatômica da infância, como também a sua flexibilidade mental. A idéia de que a seleção natural tenha-se dirigido para a flexibilidade na evolução humana não é uma noção ad hoc nascida da esperança, mas uma implicação lógica da neotenia enquanto processo fundamental da nossa evolução. Os humanos são animais que aprendem.

No romance de T. H. White, The Once and Future King, um texugo conta uma parábola sobre a origem dos animais. Deus, diz ele, criou todos os animais em forma de embriões e chamou-os diante de seu trono, oferecendo-lhes quaisquer adições a sua anatomia que desejassem. Todos optaram por traços adultos especializados: o leão pediu garras e dentes afiados, o cervo chifres e cascos. Por último, veio o embrião humano e disse:

− Senhor, creio que me fizestes na forma que agora ostento por razões que conheceis melhor que ninguém; portanto, mudá-la seria descortês. Se posso escolher, prefiro manter-me como estou. Não alterarei nenhuma das partes que me destes… Continuarei a ser por toda a minha vida um embrião indefeso, fazendo o possível para construir alguns instrumentos com a madeira, o ferro, e os demais materiais que julgastes conveniente pôr ao meu alcance… “Muito bem”, exclamou o Criador em tom jubiloso. “Vinde aqui todos vós, embriões com vossos bicos e outras características, e olhai Nosso primeiro Homem. Ele é o único que adivinhou o Nosso enigma… Quanto a ti, Homem… terás a aparência de um embrião até que te enterrem; mas todos os demais serão embriões diante de teu poder. Eternamente imaturo, sempre conservarás em potencial a Nossa imagem; poderás conhecer algumas de Nossas aflições e sentir algumas de Nossas alegrias. Sentimos pena de ti, Homem, mas também esperança. Agora vai e faze o melhor que puderes.”"


In A Falsa Medida do Homem – Stephen Jay Gould


segunda-feira, 16 de julho de 2012

João Guimarães Rosa - Natal


João Guimarães Rosa, no livro "Grande Sertão Veredas":

"Da mulher - que me chamaram: ela não estava conseguindo botar seu filho no mundo. E era noite de luar, esta mulher assistindo no próprio rancho. Nem rancho, só um papiri à-toa. Eu fui. Abri, destapei a porta - que era simples e encostada, pois que tinha porta; só não alembro se era um couro de boi ou um tranço de buriti. Entrei no olho da casa, lua me esperou lá fora. Mulher tão precisada: pobre que não teria o com que para uma caixa-de-fósforo. E ali era um povoado só de papudos e pernósticos. A mulher me viu, da esteira em que estava se jazendo, no pouco chão, olhos dela alumiaram de pavores. Eu tirei da algibeira uma cédula de dinheiro, e falei: - 'Toma, filha de Cristo, senhora dona: compra um agasalho para esse que vai nascer defendido e são, e que deve se chamar Riobaldo...' Digo ao senhor: e foi menino nascendo. Com as lágrimas nos olhos, aquela mulher rebeijou minha mão... Alto eu disse, no me despedir: - Minha Senhora Dona: um menino nasceu - o mundo tornou a começar!...' - e sai para as luas".

ETAPAS DA VIDA:



Em uma família rica, brasileira:
Século XXVIII:
12,13 anos, primeira menstruação, casamento para a mulher.
13/14 anos primeiro filho para a mulher.
16/17 anos casamento para o homem.
17/18 anos primeiro filho para o homem.
30 anos primeiro neto mulher.
40 anos a mulher morre.
55 anos o homem morre.
Não existe adolescência nem juventude. Passa-se direto da infância para a vida adulta.

1998
Mulher se casa aos 26 e homem aos 27, primeiro filho para a mulher aos 24 anos, homem morre aos 64 anos e mulher aos 70 anos.

Agora, em 2012, estes dados já mudaram... 

AMOR




“Conhecia-se a si. Conhecia a quem amava, conhecia o amor e conhecia o fim onde havia de parar, amando.”
Antonio Vieira

“Tenho por impossível que o amor, onde o há, se contente em ficar em um ser”.
Santa Tereza D’avila.

“O que passa por ser amor por outro indivíduo prova, com frequência, não ser mais do que dependência dessa pessoa. Quem ama somente uma pessoa não ama realmente ninguém”.
Erich Fromm

‎"(...) Amor é o que se aprende no limite, depois de se arquivar toda ciência herdada, ouvida. Amor começa tarde".
Carlos Drummond de Andrade

domingo, 8 de julho de 2012

EZRA POUND - Canto 81



" Sei somente que nada sei." "Cheguei tarde demais à incerteza máxima." "Minhas intenções eram boas mas enganei-me na maneira de alcançá-las. Fui um estúpido. O conhecimento me chegou tarde demais...Muito tarde me chegou a certeza de nada saber."

Pound, um dos maiores poetas americanos, mudou-se para a Itália e apoiou o Facismo durante a Segunda Guerra. Com a derrota dos italianos, foi aprisionado enquanto a América decidia o que fazer com ele, uma vez que a traição poderia ser punida com a pena de morte. Foi nesse contexto que escreveu o poema abaixo, “escrito na gaiola de ferro, cercada de lama, em Pisa, 1945.”



CANTO 81
(Fragmento)
O que amas de verdade permanece,
                                                                                                o resto é escória
O que amas de verdade não te será arrancado
O que amas de verdade é sua herança verdadeira
Mundo de quem, meu ou deles
                                                                              ou não é de ninguém?
Veio o visível primeiro, depois o palpável
                Elísio, ainda que fosse nas câmaras do inferno,
O que amas de verdade é tua herança verdadeira
O que amas de verdade não te será arrancado
A formiga é um centauro em seu mundo de dragões.
Abaixo tua vaidade, nem coragem
Nem ordem, nem graça são obras do homem,
                Abaixo tua vaidade, eu digo abaixo.
Aprende com o mundo verde o teu lugar
Na escala da invenção ou arte verdadeira,
Abaixo tua vaidade,
                                                                                              Paquin, abaixo!
O elmo verde superou tua elegância.
"Domina-te e os outros te suportarão"
                Abaixo tua vaidade
Tu é um cão surrado e largado ao granizo,
Uma pega inchada sob um sol instável,
Metade branca, metade negra
e confundes a asa com a cauda
Abaixo tua vaidade
                               Que mesquinhos teus ódios
Nutridos na mentira,
                               Abaixo tua vaidade,
ávido em destruir, avaro em caridade,
Abaixo tua vaidade                       
                               Eu digo abaixo.
Mas ter feito em lugar de não fazer
                               Isto não é vaidade
Ter com decência, batido
Para que Blunt abrisse
                               Ter colhido no ar a tradição mais viva
ou num belo olho antigo a flama inconquistada
Isto não é vaidade.
                Aqui o erro todo consiste em não ter feito.
Todo: na timidez que vacilou.



Os EUA tiveram dificuldade em condenar a morte seu Carlos Drummond. Então optaram por declarar que ele ficara louco e o internaram por 13 anos em um hospital psiquiátrico.                       

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Lygia Fagundes Telles

A voz do próximo


"Quando ela se achou velha, calmamente resolveu dependurar as chuteiras (nos negócios, do amor, nunca foi uma jogadora do primeiro time) e assumir a velhice com dignidade. Então ouviu a voz do próximo: “Que horror, mas como uma pessoa se entrega desse jeito, ficou até desleixada, presença negativa! De repente parece que resolveu envelhecer e envelheceu tudo, sem nenhuma luta, isso só pode ser neurose, há de ver, quer provocar piedade, é uma punitiva!”.


Muito impressionada com o que ouviu ela resolveu reagir, lutar por uma imagem melhor. Fez plástica, pintou os cabelos, comprou roupas da moda e começou a namorar outra vez. Então ouviu a voz do próximo: “Mas que ridícula! Caindo de velhice e ainda querendo fazer charme, uma desfrutável! Já puxou a cara uma três vezes, se pinta feito uma palhaça, virou arroz de festa e ainda namorando um moço que podia ser seu filho! Devia se recolher, devia ir rezar!”. 


Muito impressionada com o que ouviu ela resolveu se afastar da vida frívola, das vaidades deste mundo e na solidão decidiu entrar para um convento, quem sabe no convento se encontraria? E se encontrando, quem sabe encontraria Deus? Então ouviu a voz do próximo: “Depois de velho o Diabo faz-se ermitão! Vê se é possível uma vocação assim retardada, por que só agora essa mania de religião? Tudo mentira, afetação, vontade de ser original, imagine se vai durar... Quando descobrir que ninguém está ligando, deixa de bancar a santa. Pode ser também que esteja esclerosada, pode ser isso, esclerose!” 


Muito impressionada com o que ouviu ela resolveu sair do convento e num dia de depressão mais aguda decidiu se matar. Mas queria uma morte silenciosa, sem chamar a menor atenção – se possível, sem deixar sequer o corpo, estava tão triste consigo mesma que achou que nem o enterro merecia. Tirou a roupa para não ser identificada, dependurou na cintura uma sacola com pedras e entrou no rio. Então ouviu a voz do próximo: “Está vendo? A vida inteira ela só quis uma coisa, se exibir, se mostrar, uma narcisista até na hora em que cismou de morrer, imagine, entrar nua no rio! No velho estilo para provocar escândalo. Só para comover, mas a mim é que não comoveu, ao contrário, fiquei tão decepcionada, que idéia de querer fazer da morte um espetáculo." 


Muito impressionada com o que ouviu (e ouviu tão mal, a voz do próximo longe demais, quase apagando) ela quis gritar de alegria, quis rir, rir – mas então era assim? – ô Deus – e se preocupando com isso, perdendo a vida, que maravilha não ter morrido, quer dizer que alguém entrou no rio para salvá-la? Maravilha, coisa extraordinária, quer dizer que? ... Mas onde estava agora? No hospital? Se estava ouvindo, hein?! Se estava ouvindo – e livre, para sempre livre, ah, como demorou para entender que os outros – ah, que demora para se libertar, nascer de novo! Então ouviu a voz do próximo (desta vez, tão longe que ficou um sopro) pedir depressa a tampa, já estava passando da hora de fechar o caixão. "

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Anibal Machado


“O espírito só tem uma idade: ou é sempre jovem ou não é espírito. Tudo mais é arquivo e reminiscência”.
Cadernos de João. 

Fernando Pessoa


“Tão cedo passa tudo quanto passa.
Morre tão jovem ante os deuses quanto morre!
Tudo é tão pouco.
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe. E cala.
O mais é nada.”
Ricardo Reis

segunda-feira, 2 de julho de 2012

ESTÁGIOS DA AUTOCONSCIÊNCIA



Autoconhecimento elementar: Conhecimento direto e imediato. Descrição de um evento simples. Nenhuma hipótese verdadeira parece ocorrer. Nenhuma conexão explícita relacionando os elementos. Ocorre aqui justaposição ou ordenação serial. Exemplo: eu estou usando um vestido. São 7 horas. Estou com raiva.

Autoconhecimento situacional: Elementos casualmente ligados. Entretanto hipóteses verdadeiras não aparecem. Fala da própria experiência, mas ainda não generaliza. Exemplo: Estou preocupado com o compromisso. Estou com raiva porque fulano me contrariou.

Autoconhecimento de padrão interno: Respostas internas estáveis em relação a algo. São capazes de levantar hipóteses de qual será a resposta interna. Experiências inesquecíveis são aquelas que inauguram um novo padrão.  Exemplo: Sempre fico com raiva quando fulano me contraria.

Autoconhecimento como processo: Descreve como controla e modifica seu estado interno. Ao invés de somente descrever, descreve como é deliberadamente proativo na influencia de seus estados internos. As pessoas desenvolvem conhecimento verbalizável sobre os processos que elas usam pra dirigir seus estados internos. Exemplo. Apesar de sempre ficar com raiva nesta situação, hoje consegui interromper este padrão de comportamento e não ficar assim.
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Fonte: Educação para que?
Alfred Alschuler