quarta-feira, 30 de maio de 2012

Meditação


A meditação é um momento de parada, no qual focamos nossa atenção ao mesmo tempo em nosso interior e no instante presente. Esse momento de saída do turbilhão de pensamentos e ansiedades que nos tomam no dia a dia merece exatamente o nome de amor. Parar, voltar-se para si, voltar-se para o que se sente agora, esvaziar lentamente a mente e a alma daquilo que indevidamente as perturbam, isso tudo outro nome não poderia ter. E trata-se fundamentalmente daquele amor primordial, aquele sem o qual não conseguimos amar ninguém, pois não poderíamos disponibilizar a alguém algo que não possuímos: o amor próprio, o amor a si mesmo, esse germe que, se cultivado, poderia a todos contaminar, alegremente.


Ou, como diria Guimarães Rosa:

Ô ninho de passarim,
ovinho de passarinhar:
se eu não gostar de mim,
quem é mais que vai gostar?


Quando pensamos não dispor de tempo ou de paz de espírito suficientes para aprender a meditar estamos dizendo que não temos nem mesmo 10 minutinhos para amarmos a nos mesmos, para cuidarmos de nos mesmos. E se não conseguimos meditar por nossa agitação mental e por isso desistimos de aprender, estamos desistindo daquilo que mais necessitamos e que, com algum treinamento e persistência, nos transformaria em outras pessoas, mais serenas e soberanas. 

Um estudo publicado na revista científica "Science" verificou como 18 homens e 24 mulheres se comportariam quando sozinhos, em uma sala, sem ter o que fazer, por 15 minutos. Poderiam passar esse tempo pensando (eu sugeriria meditando...) ou infligindo-se choques elétricos. Doze homens e quatro mulheres preferiram os choques. Um deles chegou a usar dos choques 190 vezes, em tão curto intervalo de tempo. "É impressionante como estar sozinho com nossos pensamentos, e por apenas 15 minutos, parece uma ideia tão infeliz para muitas pessoas" disse Timothy Wilton, líder do estudo.

Vejam só a diferença na expressão de pessoas antes e depois de meditar por um mês. Fiquem atentos a expressão do olhar. Os músculos ao redor da boca são voluntários, mas os ao redor dos olhos são predominantemente involuntários, se modificam independente do nosso controle.






É evidente o benefício da prática. Mas como fazer?


O primeiro passo é tentar parar um pouco, e tentar parar um pouco, especificamente, o pensamento. Pensamos o tempo todo, em tudo e muitas vezes justamente no que não queremos pensar. E para parar um pouco tente voltar sua atenção para seu interior. Pode começar sentando-se, com a coluna ereta. Respire  então três vezes, lenta, pausada e profundamente. Isto estimula o sistema nervoso parassimpático, provoca uma pequena descarga de acetilcolina, um hormônio associado ao relaxamento, e favorece um melhor funcionamento cardíaco. Em seguida, foque sua atenção na sua respiração, agora respirando não de maneira tão lenta, mas um pouco mais lentamente que o seu habitual. Como focar a atenção na respiração? Vários são os métodos. Você pode se concentrar no movimento do abdômen, inflando e desinflando. Ou pode concentrar-se na sensação do ar entrando por suas narinas, mais frio que seu corpo, e saindo posteriormente, já aquecido. Você pode ainda tentar imaginar o ar entrando, energizando o seu corpo, limpando suas células e, ao sair, levando para fora os resíduos ruins. De qualquer forma, deixe sua mente se mover com a respiração até que ela se torne leve e suave dentro do peito. Foque na respiração de 4 a 5 minutos. Não é necessário marcar o tempo.
O FOCO é o núcleo da meditação. Os cérebros de monges que a praticam a muitos anos, quando examinados na ressonância magnética, se assemelham a cérebros de pessoas que estivessem estudando uma matéria muito difícil, e para tal estivessem muito focados, concentrados. É nesse FOCO que esvaziamos a mente de outros pensamentos. Se voltarmos a pensar em algo é porque perdemos o FOCO. Precisamos então voltar a concentrar no FOCO para que assim o pensamento vá se afastando, passivamente, sem que precisemos brigar com ele.
De inicio focamos apenas por poucos segundos antes que um pensamento nos assalte. Com a prática vamos ampliando o nosso tempo de foco.
Uma forma mais simples de focar na respiração, pra quem está se iniciando na pratica e ainda tem muita dificuldade é contar as respirações, até 10, e reiniciar a contagem, sucessivamente, por volta de 7 vezes. Assim ficaremos uns 4 ou 5 minutos focando na respiração, que é o tempo sugerido para essa etapa.
Em seguida focaremos na região do coração, imaginando e até mesmo tentando sentir um morninho no peito, que vá se irradiando para o resto do corpo, durante um ou dois minutos. Apesar de ser uma proposta meio estranha, pesquisas revelam que está pratica aumenta bastante os benefícios da meditação. Enquanto continuamos respirando calmamente (e sem esforço), visualizemos cada inspiração e cada expiração passando por essa parte chave de seu corpo. Imaginemos que cada tomada de oxigênio nutre nosso corpo, e cada expiração o livra dos resíduos de que ele não mais precisa.
O terceiro estágio está em buscar na nossa imaginação uma imagem de paz, serenidade ou gratidão.  Uma maneira é se apegar a um sentimento de reconhecimento e gratidão e deixá-lo encher o peito. Para muitos é suficiente pensar no rosto de uma pessoa amada, numa paisagem agradável, num animal de estimação ou no quintal onde passamos a nossa infância. Esta etapa pode durar uns 20 segundos.
E terminou a meditação.
Resumindo: Comece com 3 respirações lentas, pausadas e profundas. Em seguida foque na respiração uns 6 minutos, foque no coração por uns 2 minutos, busque uma imagem de paz e foque nela por uns 20 segundos. Faça isso todos os dias, de preferência duas vezes por dia.

Isso faz um bem danado!

Último toque: Existe uma técnica de meditação denominada meditação rápida, excelente para momentos de urgência nos quais não temos as condições ideais para tentar meditar. Trata-se de uma forma resumida da técnica anterior. Em primeiro lugar comece com as 3 respirações lentas, pausadas e profundas. Em seguida foque na respiração por uns 20 segundos, ou até sentir por algum momento que os pensamentos começam a se afastar e que você começa a conseguir se focar um pouco melhor. Pule a parte do foco no coração e foque em uma imagem de paz ou serenidade por uns 10 segundos. Pronto. Dura no máximo 1 minuto e já ajuda bastante.

Vai um link que aborda o tema de maneira bem simples: 
https://catracalivre.com.br/geral/saude-bem-estar/indicacao/como-comecar-a-meditar-e-acalmar-sua-mente/

terça-feira, 29 de maio de 2012

A morte do avô


Quando atendi ao telefone naquela manhã uma voz feminina perguntou:
- É do consultório do Dr. Fulano?
- É sim. Mas ele está viajando.
- Você trabalha com ele?
- Trabalho.
- É psicólogo?
- Isso.
- Será se você poderia me ajudar? Eu fui atendida anos atrás pelo Dr e estou precisando de uma orientação...
- Claro...
- Estou numa situação aqui, sem saber o que fazer... Meu filho de sete anos está na escola, esperando o avô. Como sempre faz na sexta feira, levou na sua mochila da escola mudas de roupas, pois meu pai iria buscá-lo depois da aula e levá-lo diretamente para o sítio. Ele sempre fazia isso, os dois são muito ligados. Mas meu pai acaba de morrer, teve um ataque cardíaco, e meu filho está na escola esperando que ele vá buscá-lo... Não sei o que fazer...
- Ligue para a escola, conte o acontecido, pergunte se eles podem disponibilizar uma sala para você conversar com seu filho, vá até lá, peça para chamá-lo na sala e converse com ele, conte a ele do falecimento do avô. Tenha calma, deixe que ele assimile e estimule-o a perguntar. Responda as perguntas e leve-o pra casa. Depois me ligue pra contar como foi, ok?

(E pensei na coincidência dela ter conversado justo comigo... Perdi meu pai aos 10 anos e acho que sei, ao menos em parte, o que seu filho sentiria neste momento.)

Algumas horas mais tarde, ela ligou novamente:
- Fiz tal como você sugeriu. Acabamos de chegar a casa. Ele foi até o quarto, pegou uma tesoura, abriu a mochila, pegou as roupas que havíamos separados para ele levar para o sítio e começou a cortá-las... O que faço?
- A tesoura tem ponta?
- Não.
- As roupas são velhas, são roupas de sítio mesmo?
- Isso.
- Então deixa. Ele está frustrado, está com raiva, começa a entender que não vai mais para o sítio, que não vai mais encontrar o avô. Deixe-o descarregar nas roupas que lembram a ele a situação. Ele está elaborando o acontecido. Isso é bom... Observe e, qualquer coisa, ligue.

Uma hora depois:
- Ele empurrou o sofá até a porta de entrada do apartamento. Disse que nunca mais vou sair de casa...

(Lembrei-me imediatamente do horror que senti ao reencontrar pela primeira vez a minha mãe depois de saber da morte repentina de meu pai. Se até ele podia morrer, podia me deixar sozinho, ela também poderia. Durante um bom tempo eu entrava em pânico quando ela saía de casa...).

- Ele descobriu que a morte existe. E que, se o avô pode morrer, você também pode. Explique pra ele que é verdade, que você também vai morrer um dia, assim como todos, mas que você é muito nova e que as pessoas que já são mais velhas é que já começam a adoecer mais e ficam mais frágeis. Explique que você cuida da sua saúde e que ainda vai viver muito, até ficar velhinha e ele bem grande, e que ele pode ficar tranquilo... mas, pensando bem, me diga uma coisa... cadê o seu marido, cadê o pai de seu filho?
- Ele está no velório.
- Deixe-me ver se entendi: Seu marido está no velório do sogro dele e você não está no velório de seu pai?
- Mas o que posso fazer?! Meu filho não vai me deixar sair de casa...
- Sua casa só tem uma porta? Não tem a saída pela porta da cozinha? Seu filho, ainda menino, deve ter se esquecido de bloquear a porta da cozinha... Você pretende levar seu filho ao velório ou ao enterro?
- Não!! Eu devo?!
- A decisão é sua. Se prefere não levar, então ligue para seu marido, peça para ele voltar a casa para ficar com o menino. E vá se despedir de seu pai. É você que perdeu o pai, lembra-se?
- Tá!
- E só mais uma coisa: fique tranquila com relação a seu filho. As crianças se saem muito melhor do que nós nessas situações. E qualquer coisa, é só ligar.
- Tá! Obrigado, de verdade.. Qualquer coisa eu ligo. Tchau.

E não ligou mais.
Mais ou menos um mês depois, ela me liga:
- Olha, quero lhe agradecer muito pelo que fez por mim... Eu estava realmente desorientada e você me ajudou demais...
- Não foi nada, fico muito feliz por ter ajudado em algo...
- E queria também dizer que você tinha razão: Ele resolveu a questão melhor do que eu. Lembrei-me de te ligar ontem à noite. Estávamos todos em casa, jantando, e eu comecei a ficar triste, me lembrando de papai... Não falei nada, mas acho que ele percebeu alguma coisa, se levantou de sua cadeirinha e veio até mim. E disse:
- Mãe, fica triste não. Vovô morreu, foi pro céu, virou estrelinha. Isso acontece, ele já tava velhinho, ficou tanto tempo com a gente... E ele gosta tanto da gente que vai ficar sempre perto de nós... E um dia a gente também vai morrer e aí vamos encontrar com ele...

domingo, 27 de maio de 2012

CORNÉLIO PENNA:



“Minha mãe era uma figura de constante e misteriosa doçura, sempre mergulhada em um sonho longínquo, como se toda ela estivesse envolvida em seu manto de viuvez, de crepe suave, quase invisível, que não deixava distinguir-se bem os seus traços, os seus olhos distantes. Andava pelas salas de nossa casa em silencio, sentava-se em sua cadeira habitual sem que se ouvisse o ruído de seus passos, e, quando falava, era em um só tom, sem que nunca a impaciência a alterasse. A influencia que exerceu sobre os caracteres inquietos e contraditórios de seus filhos foi intensa, invencível, mas serena, e se fazia sentir apenas por intuição, pela rede mágica que nos prendia na preocupação sufocante de não provocar uma nuvem de tristeza que perturbasse o seu olhar altivo e doce, que nos falava com irresistível eloquência. Parecia a nós todos que um gesto mais forte, uma palavra mais alta, de nossa parte, viria quebrar aquele encanto, e partir o cristal muito frágil que a mantinha entre nós, e vivíamos assustados, retidos pelo medo de agir, de sentir, de viver, de forma poderosa e plena, e assim despertá-la, e poderia então ouvir as batidas de nossos corações, agitados pela maldade do mundo. Sabíamos todos, contado em segredo pelas outras senhoras, o rápido e doloroso drama que a tinha despedaçado. Tendo casado em Paris, seguira para Itabira do Mato Dentro, e, depois de oito anos de felicidade, meu pai morrera subitamente. Desorientada, tentou refugiar-se junto de minha avó, que ficara em Honório Bicalho, onde estava a mineração de ouro de minha família materna, e, na estação, soube que ela falecera na véspera. Quis então ir para junto da irmã materna e sua madrinha, em São Paulo, mas esta também morreu, no mesmo mês... e assim se fechara sobre ela uma lousa inviolável de renúncia e de tristeza, que nunca podemos vencer, durante tantos anos de sobrevivência. Quando fecho os olhos ainda a vejo, a mesma de todo o tempo, e procuro em seu rosto ou em suas mãos um sinal de paz e de espera. Mas não o vejo, e me lamento porque não a fiz sofrer sem reservas, porque não a fiz chorar todas as lágrimas da maternidade infeliz, porque não despejei em seu coração todo o fel que prendi ferozmente no meu, porque não lhe pedi socorro aos gritos, não deixei que eles saíssem de minha boca, fechada com violência pelo medo e pela incompreensão... e é por isso que desejava guardar sua imagem muito pura, muito secreta, e tenho a impressão de traí-la, falando sobre ela! “
in Cornélio Penna, romances completos, editora José Aguilar, 1958. Pg XXVI.

sábado, 26 de maio de 2012

Trecho de “Sobre a pressa”



É muito interessante comparar a etimologia da palavra humildade com a etimologia da palavra humano.

Humildade vem do latim humilìtas,átis , que significa de pouca elevação, de pequena estatura. Humano se origina a partir da palavra latina humánus,a,um, que indica o que é próprio do homem.

          Os dois vocábulos têm em comum o prefixo HUM, do latim húmus, significa terra, solo. Humilde nesse sentido indica o que permanece na terra, não se eleva da terra, aquilo que é humilde, de baixa estatura e por isso mesmo próximo ao solo. E Humano indica por sua vez habitante da terra, por oposição primeiro aos deuses, depois aos outros seres.

É de se notar que as duas palavras, humilde e humano, têm a mesma cognação, ou seja, vem de uma mesma raiz. Isso sugere uma íntima correlação entre os termos. Poderíamos então imaginar, em virtude desta correlação, que humano e humilde são termos irmãos. E poderíamos até nos arriscar a dizer que seria próprio do humano a humildade, o saber-se próximo do chão, o saber-se finito e limitado. O ser humano seria assim um ser de aprendizagem, um ser que se constitui na aprendizagem durante toda a sua vida, nunca chegando a estar pronto.

Mas negamos essa condição de humanos aprendizes, e almejando a perfeição - perfeição esta inumana por definição - vivemos numa busca desesperada do sucesso, do não falhar, do chegar, ver e vencer absolutos. E assim vivemos com pressa, medo e desesperança.

Há autores que consideram a saudade como sendo decorrente de projetos vitais interrompidos, um tipo de paralisação no passado, pela não realização de algo que era vital para o sujeito. Nesse contexto a pressa não seria um tipo de saudade prospectiva, uma saudade do futuro?

Assim como a nostalgia é a saudade do passado, a ansiedade é a saudade do presente e a pressa é a saudade do futuro.

Temos saudade do passado quando poderíamos ter feito algo naquele tempo, e era muito importante que ao menos tentássemos, mas não o fizemos e então paralisamos, nostálgicos. Ter saudade do futuro, por seu lado, seria decorrente da pressa, do imediatismo de querer chegar ao sucesso futuro antes mesmo que o futuro chegue. O medo de falhar e a vontade de certeza absoluta diante do futuro nos jogam em um estado de pressa, e acabamos aprisionados no futuro, pensando sempre no futuro no afã de conseguir certeza sobre a realização de nossos projetos. E acabamos vivendo de forma provisória, descolados do presente, descolados do que seria possível que fizéssemos já, descolados daquilo que já está ao alcance da nossa mão, de cada pequeno passo que poderíamos dar na nossa auto-construção, com calma e confiança, no desejo de se preparar para o futuro que virá. 

            A nostalgia, a saudade do passado, teria assim um vazio em si, daquilo que poderia ter sido e que não foi. A pressa, a saudade do futuro, teria o vazio da ansiedade, daquele que nem vive o seu presente, pois está em aflito e paralisado pelo medo do que virá, nem constrói o seu futuro, pois se precipita na pressa e no imediatismo.

            Para nos liberarmos das amarras da pressa, a estereotipia de nossos dias, é preciso parar e pensar. Não temer a tomada de consciência do mal que nos cabe, considerar a própria experiência e ter os olhos abertos para ver a realidade.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

As tiranias da intimidade:







Consiga ao menos um motivo justo pra tratarmos pior as pessoas que mais amamos do que aos outros. E é isso que fazemos muito frequentemente. Com desconhecidos somos polidos e educados. Com os mais íntimos somos grosseiros e descuidados. Onde está a justificativa razoável pra isso?



Se perguntássemos para um desconhecido onde fica certa rua e recebêssemos a resposta:
- Moro neste bairro há anos, mas não sei onde fica esta rua.
Responderíamos:
- Muito obrigado.
E procuraríamos outra pessoa que pudesse melhor informar. Se perguntássemos ao nosso irmão - morador no mesmo bairro - onde fica a tal rua e recebêssemos a mesma resposta muito provavelmente responderíamos algo como:
- Mas você é burro, hem?
Em uma cena televisiva a personagem mulçumana da novela chega a sua casa trazendo como convidada a nova amiga brasileira. Ao entrarem na residência, a mulher mulçumana retira o véu e a brasileira se surpreende:
- Mas você está toda arrumada...
- É...
- Sua roupa está linda, suas joias, maravilhosas...
- É...
- Mas você se cobriu toda com o véu para sair... E está tão linda... E só tira o véu dentro de casa... Você se arruma assim para ficar em casa?
- Uai, (diria a mulçumana, mineiramente...) você se arruma para desconhecidos? Para pessoas que você vai encontrar na rua e nunca mais vai ver? Eu me arrumo para quem me ama.
- É...
É claro que poderíamos discutir a opressão da mulher mulçumana, o domínio de seu corpo através do véu... , mas não deixa de ser interessante sua colocação de como nos importamos muito mais com a impressão que causamos em desconhecidos do que com a impressão que causamos nas pessoas mais próximas.

As tiranias da intimidade são uma forma de agressão que acontece no dia a dia, em família ou com pessoas com quem temos mais intimidade, nas pequenas disputas, nas brigas por ninharias, num joguinho por pequenos poderes altamente viciante e contagiante. Seja gritando ou murmurando, seja com muita agressividade ou com cordialidade, acabamos por corroer nossa alma numa disputa absurda por um trono vazio de pretensões. As tiranias de intimidade podem por a perder anos de amizade ao semear dentro de nós uma certeza sutil e de crescimento lento e contínuo, a certeza simultânea de que não amamos e não somos amados. Acabamos cegos para enxergar os delicados sinais de amor ainda existentes, as brechas de reconciliação, o sentido maior que ainda poderia ser recuperado.

Meu avô, na minha adolescência, ao perceber meu nascente interesse em namorar, deu duas preciosas dicas: 
- Primeira, se você gostar de uma menina, tente, diga a ela. Se não disser, o não está dado de antemão. Se disser, pode ser que ela diga sim e suas chances já aumentam bastante....
- Segunda, quando você começar a namorar, na primeira oportunidade que tiver, conheça a família da menina.
- Mas vô, isso é a última coisa que meus amigos querem fazer quando começam a namorar alguém...
- Eles estão equivocados. Conheça logo a família da menina. Veja como ela trata os pais e irmãos. É como ela vai te tratar quando tiver suficiente intimidade. Você precisa ver se gosta...
Sábio vovô! 

Poderíamos argumentar tratamos sem cuidado as pessoas mais íntimas pelo fato de que com elas temos a liberdade de sermos mais sinceros e espontâneos.
Mas o que acontece de fato é que em nome de uma suposta sinceridade cometemos violências. Aproveitamos para deixar vazar toda nossa impaciência, irritabilidade ou até inveja. E nós escondemos atrás da falácia da sinceridade, de uma suposta autenticidade.

Quando um amigo me diz:
- Vou lhe falar uma coisa, mas só porque sou muito seu amigo...
Ele raramente termina esta frase. Porque eu sempre retruco:
- Se você é meu amigo e, por isso mesmo, sempre falou com naturalidade comigo, sem precisar pedir licença para tal... Agora vem pedir licença para ser sincero... Pense bem: será se você deve falar isso mesmo?
E penso eu: Lá vem uma inveja travestida de sinceridade.
E o amigo raramente termina sua frase.

Sinceridade não é falar o que dá na telha quando se tem vontade. Fazer isso indiscriminadamente seria uma absoluta desconsideração de minha parte em relação à pessoa que me escuta. Falo, neste caso, como se ela não existisse, como se não existisse a necessidade de outro para que a comunicação ocorresse.

Sinceridade é falar o que é importante no momento oportuno. Devo me perguntar se o que pretendo dizer é importante de fato, se de alguma forma vai possibilitar a comunicação, se é relevante no contexto. Mas devo também me perguntar se o momento é esse, se há realmente a possibilidade de a comunicação ocorrer.

Enfim, todo esse descuido ao tratar as pessoas mais próximas recebe um nome muito apropriado: as tiranias da intimidade. Esse nome tem aqui um sentido em parte semelhante, mas em maior parte diverso do utilizado por Richard Sennet, em seu livro “O declínio do homem público”. Aqui as tiranias da intimidade se referem a esse modo descuidado e até violento com o qual tratamos as pessoas mais íntimas. E que acaba por desgastar as relações, afastar as pessoas, induzir o desamor.

E o reverso seria tão simples, tal como expresso no poema de Camões:

"Uma palavra, um gesto, um olhar bastava."



domingo, 20 de maio de 2012

Do cuidado e de suas gradações:

  1. Cuidadoso:
É aquele que tem a atitude amorosa. Considera a pessoa e a realidade e faz o que está ao seu alcance. Toma as providencias necessárias sem perder a medida.

  2. Diligente:
É aquele que ao cuidado junta estudo, aplicação e esmero. Aqui a dimensão do tempo se coloca como critério para que o cuidado seja efetivo. A planta irá secar se não for aguada no devido tempo, o remédio não fará o efeito necessário se não for dado na devida hora. Pode até aparentar estar com pressa, mas de fato não está. Somente sabe que é preciso fazer no tempo adequado. Tenta-se aperfeiçoar a ação.

        3. Solicito:
É aquele que começa a ser incomodado pela ansiedade. Na solicitude inicia-se a presença de alguma apreensão e receio. As condições reais de conseguir o resultado já não são consideradas em sua plenitude. Querendo ajudar ou resolver o problema, querendo também que o outro aprove suas atitudes, corre-se o risco de perder o foco e a acuidade.

 4. Desvelado:
Aqui se emprega contínua vigilância, muito zelo, quase não dorme nem descansa enquanto não consegue aquilo que deseja. A ansiedade é marcante neste ponto. Há uma ânsia de salvar, de resolver de qualquer forma a questão que impede que se considere adequadamente o problema, e acaba mesmo por provocar o fracasso da tentativa. Muitas vezes até agravam bastante a dificuldade. As atitudes são precipitadas e impulsivas. É frequente não se importar se o outro quer ser ajudado ou não.

  5. Ansioso:
Aqui se atinge o máximo da ansiedade, perde-se completamente a prudência ou o senso de medida e desconsidera-se totalmente os desejos do outro. O espírito encontra-se completamente perturbado e incapaz de uma avaliação adequada da situação. Está-se tomado por onipotência. As ações tendem a resultar em desastre.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Poesia


Enfim, o que importa?
Saber em qual porta tentar?
Saber como continuar?
Cair, deitar, levantar?
Enfim, algo importa?
Topo, auge, ponta ou meta,
cima, baixo, melhor ou pior:
Algo me toca?
E então, porque tanto medo?
Se nada tem relevância,
se não se busca o aconchego?
Enfim, o que fica?
Se se pode morrer tão cedo,
se o tempo sempre marca e envelhece?

Na retina das lembranças se há amor
a saudade se distancia.
Se se morre cedo
Durante alguns anos aqui esteve
(nunca agradeci os dez anos que tive, sempre xinguei os setenta que me foram tomados).
E o tempo também nós trás uma sabedoria infantil
de não perder mais tempo
de se fazer o que gosta e por inteiro
de amar intensamente.

Está ao lado
de tão perto
singelo
ao alcance da mão
basta pegar.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

UMA RELEITURA DO QUADRO “OS CACHORROS DA MADRUGADA”, DE NELLO NUNO

Nello de Moura Rangel Neto



Alguns quadros parecem ter a propensão de causar estranhamento em quem os vê. A pintura “Os cachorros da madrugada”, de Nello Nuno, tem essa qualidade.

  


Esse quadro é cercado de roxo, de um tom ao mesmo tempo profundo e ambíguo.
Acima, sobre o fundo negro, um cachorro translúcido nos fita, tendo uma lua ao lado e um pequeno sol ao fundo, que ilumina muito pouco.

Abaixo, sobre um fundo azul, outro cão, igualmente translúcido, nos olha, ladeado por dois pássaros que tentam entrar nesse fundo azul, e por um gato, que também nos olha de frente, tranquilamente postado na zona de fronteira entre o azul e o roxo. Invade ainda o espaço azul pela direita um galho com folhas.

Um dos pássaros parece descer dos limites do quadrante superior para o quadrante inferior, enquanto uma flor, com as raízes expostas, parece subir em sentido contrário, para o quadrante superior. Como único elemento inteiramente fora dos dois quadrantes aparece uma forma verde, à direita, que insinua a imagem de uma das duas pedras do pico do Itacolomy, símbolo de Ouro Preto, cidade que o artista escolheu para residir.

Apesar de a pintura portar uma estrutura simples, dois quadrantes, um superior e um inferior, preenchidos por diferentes elementos, essa estrutura não induz a uma sensação de estabilidade. A dinâmica do quadro é intensa e complexa, com o nosso olhar passeando por toda a obra, pulando de tom em tom, em uma dança de cores que passa por todo o campo pictórico. A dicotomia aparente entre os dois campos também é rompida quando vazada pelo pássaro que desce e pela planta que sobe.

Paradoxal esta composição: o pássaro, ser alado e associado ao espaço livre e ao ar, desce ao solo; a planta, ser incapaz de sair do lugar, enraizada ao solo, sobe ao ar e rompe espaços, explodindo numa flor rosa, figura central do quadro pelo intenso contraste entre sua cor e o negro do fundo.

Igualmente paradoxal é a divisão do espaço em dois quadrantes. O superior sugere mais a terra, pela sua cor negra e pela tênue sombra horizontal azul projetada pelo sol, que parece indicar cumes de montanhas. O quadrante inferior é azul e sugere com sua cor o céu, o espaço aéreo, apesar de estar na parte inferior do quadro.

Outra interpretação possível para os dois quadrantes é considerar noite no quadrante negro superior e dia no quadrante azul inferior. Mas o quadrante inferior tende mais para uma madrugada, especificamente quando na madrugada começa a se insinuar um amanhecer. Parece mais com a madrugada não somente pelo tom de azul mais próprio mesmo do final da madrugada como também por um efeito de lusco-fusco, aquele período que não é dia nem é noite, período crepuscular, onde já não é tão escuro, mas ainda não está realmente claro. Nesse período nossos olhos não conseguem ver com precisão porque não sabem como se adaptar a essa luz intermediária. Não sabem se privilegiam os cones, células especializadas da nossa retina que veem cores e precisam de mais luz para funcionar bem. Ou se privilegiam os bastonetes, células que veem movimentos e variações sutis de luminosidades e precisam de menos luz.

Além do azul crepuscular que preenche o fundo do quadrante inferior, o artista usa também de um recurso cromático para induzir a sensação da madrugada e do lusco-fusco. O azul do fundo possui uma luminosidade praticamente idêntica aos verdes dos pássaros e do galho com folhas. Para definir os limites de uma forma, nossa visão usa principalmente das diferenças de luminosidade entre os tons. Como essa diferença é quase inexistente nesse caso, o olho se confunde ao tentar precisar os contornos dessas figuras. Basta comprimir um pouco os olhos diante do quadro que se percebe como as figuras azuis e verdes se misturam. Este é mais um elemento do quadro que induz percepções ambivalentes.

É relevante observar que a flor germina no quadrante dia e floresce no quadrante noite.

À exceção dos pássaros, pelo fato de terem um olho de cada lado da cabeça, todos os outros bichos nos olham de frente, nos encaram de uma maneira muito intensa, com seus olhos ressaltados por cores de grande contraste e brilho. São olhares acusatórios? São olhares inquisidores? São olhares que nos remetem a nós mesmos, como se quisessem sugerir que olhássemos para dentro de nós? Difícil precisar. Como é próprio deste quadro há mais de um sentido possível nesses olhares.

A translucidez dos corpos dos cachorros produz uma sensação de profundidade ambígua, ora destacando os corpos do fundo, ora jogando-os para trás enquanto joga o fundo para a frente. Ao mesmo tempo em que deixa ver através, essa translucidez obscurece, não deixando ver tudo, mas apenas em parte.

Não há nenhuma pessoa no quadro. Os seres vivos que o compõem são animais ou vegetais, induzindo a ideia de uma vivência regressiva, remetendo às historias infantis, permeadas de bichos sobre os quais projetamos as atitudes e os sentimentos humanos.

As linhas divisórias do quadrante superior e inferior funcionam como fronteira entre os espaços da pintura. E essa fronteira é atravessada pelos pássaros, pelo gato, pela flor e pelo galho. Mas ao atravessá-la todos eles mudam de cor, metamorfoseados, como que sugerindo as mudanças que se sofrem quando se ultrapassam as fronteiras do que é fixo e determinado. Particularmente o caule da flor não só muda de cor como muda também de luminosidade. Na parte inferior a luz que ilumina o caule vem a partir do lado direito. Já na parte superior a luz vem iluminar a partir do lado esquerdo.

Chama a atenção a assinatura do pintor, por ter dois tons. Percebe-se que o sobrenome foi pintado algum tempo depois da pintura do nome, tendo o autor usado tom de azul diferente. O tom de azul do nome é idêntico ao tom de azul da raiz da flor. Sabe-se que foi a primeira vez que Nello Nuno assinou em uma obra sua o seu sobrenome Rangel. Em um quadro tão fluido e tão avesso diante de qualquer tentativa de classificação taxativa e apressada, o artista elabora a própria identidade. E parece sugerir que identidade possa ser algo mais próximo do fluido, da mudança, do que do fixo e do imutável.

Essa pintura não aceita uma leitura dicotômica, dualista ou idealista. Seus elementos constitutivos não permitem a classificação apressada, transmutando-se sempre que tentamos aprisioná-los em estereótipos. São os cães que saltam aos olhos ou recuam, que revelam ou escondem. É a flor que sobe e o pássaro que desce. São os olhares que encaram sem permitir classificar seu sentido. É o sol que não ilumina e a flor que o faz. É o animal e a planta que se metamorfoseiam ao ultrapassar fronteiras. Assim, são muitos os elementos que indicam uma ambivalência de sentidos e dessa forma nos lançam numa atmosfera de incerteza e indefinição.

Daí serem tão frequentes o estranhamento e a inquietude vivenciados pelas pessoas que olham para essa obra.

Estranhamento é uma palavra com etimologia muito precisa: remete ao estrangeiro, àquele que é de fora, que não pertence à família. Estranhamento é a atitude primeira de muitas pessoas quando estão diante desse quadro. Julgo que essa atitude revela a dificuldade que temos com aquilo que em nós consideramos como feio, errado ou mau, e que o quadro parece de alguma forma nos querer lembrar disso. 

Talvez, por isso mesmo, esse quadro traga em si a possibilidade de modificar algo em nós, modificar algumas formas muito taxativas que temos de olhar para nós mesmos (e consequentemente para os outros à nossa volta), ou até permitir uma reconfiguração um pouco mais abrangente dentro de cada um, uma verdadeira ressimbolização do modo de se ver e do modo de ver a realidade na qual vivemos.

É um quadro que exige coragem. Especialmente a coragem de se refazer, de se ressimbolizar, de se lançar no espaço da mudança e da transformação.



Poema


Mas a paz, ela se parece mais ou menos assim com o que?
Com o sono tranqüilo de uma criança?
Com o descanso suado do corpo da pessoa amada?
Com a vista do mar de morros do beco das pedras em Lavras Novas?
Com o sem fôlego que sentimos quando estamos perto de alcançar aquilo que tanto almejamos?
Ou quando a vida revira e temos quase tudo em aberto diante da gente pra que possamos recomeçar?
Mas e a paz, ela se parece mais ou menos com o que?

terça-feira, 15 de maio de 2012

ANTI-INTRACEPÇÃO E RENEGAÇÃO



     Para falarmos de ANTI-INTRACEPÇÃO e de renegação é necessário que antes façamos a diferenciação entre estereotipia e preconceito, e suas relações com o problema do estigma.
    
     A  palavra estereotipia vem do francês stére, derivado do grego stereós ( sólido, firme ). Diz respeito a técnicas de impressão, onde se converte em formas sólidas (clichê) as páginas que primeiramente foram compostas em caracteres móveis. Ou seja, remete a uma transformação do que era móvel em uma forma compacta, fixa. Estereotipar tem nesse contexto o significado de tornar fixo, inalterável. No contexto da psicopatologia a estereotipia seria uma repetição automática e frequente de atitudes, gestos ou palavras, sendo comummente encontrada nos esquizofrênicos, especialmente nos catatônicos, como uma "perseveração extravagante e incompreensível"(Alonso  Fernandes).

     A palavra preconceito, no dicionário etimológico, significa um pensamento, ideia ou opinião prévios, algo como um conceito formado antecipadamente, sem que se tenha um fundamento, um juízo prévio a respeito de algum aspecto da realidade antes que se conheça adequadamente este aspecto. Num contexto social poderíamos dizer do preconceito como sendo uma atitude de hostilidade frente a um grupo ou a uma pessoa enquanto membro deste grupo, atitude esta apoiada num juízo prévio que carece de fundamento. Uma "racionalização de uma atitude irracional"(Jahoda).

     A relação entre estes dois conceitos é delicada. Ambos são modos de não pensar. O preconceito frequentemente se apoia no pensar estereotipado, e este se caracteriza por um maior grau de rigidez. No preconceito os fatos podem não estar ao meu alcance. Uma vez que deles eu dispusesse o preconceito se alteraria. Na estereotipia os fatos não interessam, mesmo quando os tenho à mão. Usando uma metáfora, a estereotipia seria como a cama de tortura de Procusto, na qual se coloca uma pessoa. O que "sobrar", corta-se, o que faltar estica-se. Ou seja, o aspecto da realidade que não se encaixar no que já tenho preconcebido eu excluo, não considero. Quando na estereotipia - reino das categorias rígidas e inflexíveis que não coincidem com a realidade - não estamos lidando com ilusões, nem com enganos (que são próprios do estado nascente). Estamos no reino do delírio, onde a característica principal é ser inalterável frente aos fatos.

     Passemos agora ao problema do estigma.

     Na Grécia, onde surgiu, o termo estigma foi utilizado para designar os sinais ou marcas corporais com os quais se procurava evidenciar algo de mau sobre o status moral de quem os apresentava. Essas cicatrizes indicavam que o portador era escravo, criminoso ou traidor. Se tratava de uma pessoa marcada, ritualmente poluída(manchar, sujar, corromper, macular, profanar), que deveria ser evitada. Na era cristã o estigma teve dois sentidos: 1) Sinais corporais da graça divina, como no caso das chagas (Chaga no latim vem associado a praga, golpe, ferida,                          desgraça, flagelo, calamidade) com a forma de flores em erupção sobre a pele; 2) Sinais médicos, como sinais corporais de distúrbios físicos.

     Atualmente o termo está mais próximo de seu sentido original, de marca ou impressão indicativa de uma degenerescência (mal, loucura, doença). Porém é mais aplicado à desgraça do que à sua evidência corporal. Ou seja, alguma característica, algum atributo da pessoa que tem um efeito de descrédito, inabilitando-a à aceitação social plena.

     Segundo Goffman, esse atributo depreciativo não é depreciativo por si só, mas num determinado contexto relacional. Além disso, nem todos os atributos indesejáveis estão em questão mas somente os que são incongruentes com o estereótipo que criamos para um determinado tipo de indivíduo.

     Considerando que os modelos identificatórios oferecidos pela cultura são, a maior parte das vezes, baseados em modos estereotipados de se conceber a pessoa, estamos como que condenados a viver num mundo de estigmas. A qualquer momento pode se revelar uma característica incompatível com o modelo estereotipado(E isto é inevitável, posto que o modelo estereotipado se caracteriza por uma extrema rigidez, uma missão impossível de se realizar, incompatível com as possibilidades humanas) e esta característica "revelaria" toda a miséria que a pessoa julga possuir, e que a incapacitaria para uma relação social plena. Podemos dizer  que   uma  vez transitando nos modelos estereotipados do dever ser inevitavelmente teremos, ao nível da vivência, a permanente sensação de uma chaga prestes a se revelar e transformar nossa vida numa catástrofe. Começamos então nossa carreira de colecionadores de segredos: se o que julgamos ser nosso estigma é evidente à primeira vista nos especializamos em manipular tensão; se não é evidente, nos especializamos em manipular informações.
          
     Para tentar escamotear o que consideramos a nossa miséria, para tentar escapar do estigma que se baseia na estereotipia, podemos utilizar de vários ardis. Neste trabalho pretendo falar de quatro deles: a projeção, a fusão, o deslocamento e a renegação.

     A função primordial da projeção é tentar controlar o mal. E a maneira pela qual ela tenta fazer isto é colocando o mal no outro. O procedimento é semelhante ao ritual de se sacrificar um animal - o bode expiatório -, fazendo deste o portador de todo o mal da tribo. Pega-se o mal coletivo e deposita-se no animal que é abandonado no deserto, onde morre, expiando a culpa de todos. A diferença deste ritual para o mecanismo da projeção é que no ritual ao menos sabia-se que o mal, originalmente, era da tribo. Na projeção não percebo que o mal inicialmente era meu, só o percebo no outro.

     Na fusão, ensimesmado em meu próprio mundo, misturo-me com o outro impedindo qualquer diferenciação. A alteridade, neste caso, some, como que fagocitada. Uma ameba indiferenciada, viro o que já sei e penso. Fico fundido, confundido com o(no) outro que, aliás, não mais existe.

     O deslocamento é o ardil mais difícil de ser percebido. Este mecanismo tem função defensiva evidente. Ocorre como um deslize: quero atingir a determinado alvo, mas não posso, ainda não tenho força suficiente, então atinjo indiretamente. É a famosa espingarda de matar veado na curva. Queria falar mal dos brancos, mas meu chefe é branco, então falo mal dos judeus. Boto a fumaça num lugar, e o fogo no outro. Neste ardil, apaixonado por imagens, fico vulnerável às aparências, preso nas primeiras impressões. No futebol poderíamos imaginar a metáfora daquele que desloca para receber a bola (responsivo) em contraposição àquele que desloca para fugir dela.

     Por último a renegação. Como foi dito anteriormente, frente as nossas mentalidades estereotipada é inevitável que nos coloquemos como estigmatizáveis. Neste contexto tentamos renegar as vivências de miséria que temos. Há aqui um problema de auto-repúdio, e de autoestima, uma desconfiança a respeito de si mesmo. A pessoa não pode recuperar a própria experiência, e vive por isto mesmo num estado real de miséria. Não pode voltar para si mesmo, ter-se e saber-se, apropriar-se de si mesmo, pois tem a certeza de que vai encontrar a miséria comprovada e definitiva. Assim mando o que julgo ser a minha miséria para "outro país", mas quem acaba renegado/desterrado sou eu mesmo (É terreno fértil para a despersonalização). Considero a renegação como a mais ampla das categorias até então citadas. Ela envolve as categorias anteriores. Na projeção, na fusão e no deslocamento evito a realidade pois quero evitar a imagem deformada que tenho de mim mesmo. E deste modo estou no âmbito da renegação. Considero a ANTI-INTRACEPÇÃO como sendo este impedimento de recuperar a própria experiência. Trata-se de uma deformação da consciência por uma estereotipia nos modos de se conceber.

29/5/92 

Rosa

“Aquele homem não podia ser bom, ele ainda nem conhecia a sua maldade” 
Buritis, João Guimarães Rosa

José Bergamín


José Bergamín


A velhice é uma máscara:
Se tu a tiras, descobres
O rosto infantil da alma.

A infância vai te seguindo
Durante toda a vida.
Mas ela vai mais devagar
E tu andas sempre depressa.

Quando a velhice lhe chega,
Não é que voltes à infância,
É que moderas o passo
E por fim a infância lhe alcança.

In Rimas y sonetos razagados

quinta-feira, 10 de maio de 2012

INVEJA - trecho




A inveja também é verde, mas de um verde acinzentado e escuro. Cobras atacam seu coração marrom, como dito antes, tom do conservadorismo, do fanatismo e da obstinação. A inveja parece ter um chocalho (ou seria uma coroa?) na mão. Essencialmente dividida, a inveja vai para um lado e olha para o outro. E é a única com a boca arregalada, que poderia ser de pânico, mas o restante da expressão de seu rosto e de seu corpo não parece indicar isto. Resta então a essa boca arregalada ser uma boca famulenta, insaciável. No quadro somente a inocência e a inveja possuem “unhas-garras”.


 Virada para a esquerda a inveja parece sugerir que vai adiante, mas a posição de suas pernas é ambígua. Pode indicar movimento para frente, recuo para trás, ou mesmo que está parada apoiada sobre seu pé direito. A sensação é de que na verdade a inveja está imobilizada, olhando para trás, numa espécie de saudade. Seus olhos são vermelhos, assim como os olhos da máscara da má fé e do sarcasmo.

O olhar tem particular importância no caso da inveja. Podemos ter inveja de coisas tangíveis, do dinheiro alheio, da beleza física ou da juventude de outras pessoas. Mas a inveja mais dura, mais visceral, é a inveja do brilho no olhar, a inveja da sensação que o outro pode produzir em nós de que ele é verdadeiramente feliz. Dinheiro ou beleza física  podemos tentar conquistar. Mas como conseguir a graça e a felicidade quando nem mesmo acreditamos que elas existem? Como tomar do outro o brilho do seu olhar, a sua vitalidade? Se estivermos de fato vitalizados nem mesmo o olhar mais invejoso é capaz de tirar de nós a graça.  A inveja acaba por ser uma forma de desesperança, uma crença de que estamos condenados à infelicidade e que a graça e a vitalidade são ilusões pueris.
 

quarta-feira, 9 de maio de 2012

CULPA




Ao vermos uma criança chorando, sentindo-se culpada por algo que fez e pelo qual foi repreendida, supomos estar frente a um verdadeiro arrependimento e imaginamos assim que o comportamento criticado dificilmente acontecerá novamente. Ledo engano. Pode até acontecer um retraimento na criança daquele tipo de ação que foi repreendido. Mas, se o foco da reprimenda foi a produção de culpa e não a compreensão do erro cometido – este é o padrão mais comum em nossa cultura – a criança em questão não saberá verdadeiramente em qual aspecto suas atitudes estavam inadequadas, e, quando atenuado o temor diante da reprimenda original, muito provavelmente voltará às suas atitudes anteriores. 

A culpa não se presta para a promoção da mudança. Mudamos se compreendemos o fundamento do nosso erro. A culpa não nos aproxima desta compreensão, pelo contrário, nos afasta dela. A pessoa que se sente culpada, ao sofrer diante do acontecido expia com seu suposto arrependimento seus incômodos sentimentos. E assim se afasta da compreensão de seu erro. 

Mesmo porque diante da culpa não se erra, peca-se. E não se erra diante do outro, peca-se contra Deus.

Se compreendêssemos os fundamentos de nossos erros poderíamos voltar atrás e escolher outro caminho. Se não estamos mais na direção equivocada estamos desobrigados por que mudamos, não respondemos mais pelo que caducou. 

A culpa só presta para incutir temor e assim possibilitar que a manipulação possa ocorrer mais facilmente.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

POESIA

Enfim, o que importa?
Saber em qual porta tentar?
Saber como continuar?
Cair, deitar, levantar?
Enfim, algo importa?
Topo, auge, ponta ou meta,
cima, baixo, melhor ou pior:
Algo me toca?
E então, porque tanto medo?
Se nada tem relevância,
se não se busca o aconchego?
Enfim, o que fica?
Se se pode morrer tão cedo,
se o tempo sempre marca e envelhece?

Na retina das lembranças se há amor
a saudade se distancia.
Se se morre cedo
Durante alguns anos aqui esteve
(nunca agradeci os dez anos que tive, sempre xinguei os setenta que me foram tomados).
E o tempo também nós trás uma sabedoria infantil
de não perder mais tempo
de se fazer o que gosta e por inteiro
de amar intensamente.

Está ao lado
de tão perto
singelo
ao alcance da mão
                basta pegar.

Belo Horizonte, 1-5-2012